Na eleição da Argentina, a vingança contra o maior legado iluminista da modernidade

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 21/11/2023 - Publicado há 6 meses

Já procurei na internet panelas de pressão, agasalhos pretos, louça — azul e branca —, produtos contra ferrugem, maçanetas de porta, entre outras inutilidades e utilidades. Motosserra e marreta não fizeram parte das minhas buscas.

Segundo o Google, em razão das minhas pesquisas na internet, sou uma internauta careta. Não procuro armas, manifestações de ódio, não escrevo sobre o baixo corporal.

Em razão da política argentina mudei meus hábitos. Procurei objetos cortantes e objetos utilizados para impactos demolidores como motosserra, cassetetes e porretes. Estimulada pela minha formação de historiadora, fui às raízes históricas destes objetos e palavras. Descobri ser o pai da motosserra, a serra. Pesquisando um pouco mais, encontrei os responsáveis pela invenção, no século 18. Dois médicos escoceses, em 1780, inventaram uma corrente com dentes serrilhados ligados a um cabo para uso médico cirúrgico. Fiquei horrorizada com o uso da geringonça em mulheres humanas. Do lado mais ameno, pude ler sobre a utilidade do engenho manuseado por paisagistas e arboristas, sem deixar de lado o perfil dos atuais destruidores de florestas.

Criada à moda antiga, acostumei meus ouvidos com discussões políticas onde objetos de cultura material, como tijolo, alimentos, como o pão, ou, ainda, metáforas, do tipo comer pelas bordas, representavam uma maneira de iniciar uma discussão para caracterizar um projeto político. Mas as novas linguagens, estimuladas pela internet, mudaram o lugar das coisas com efeitos devastadores para a política.

A estética política contemporânea é diferente. Ela valoriza referências encontradas nos jogos virtuais, nos fantasmas e nos utensílios possantes, masculinos e agressivos. Por repetição, os fragmentos são introduzidos pela mídia, na cabeça das pessoas. O objetivo invisível é favorecer a ruptura entre realidade e fantasia, ficção e história, a racionalidade e a irracionalidade. Buscando a raiz do problema relembrei o papel de palavras fora de moda. O termo ideologia, por exemplo, utilizado com mais frequência nas décadas de 50-60 do século passado, é perigoso, sugere cancelamento. Ele propõe o vínculo entre a superestrutura com a infraestrutura (variando os níveis de autonomia). A relação serve para dar sentido às manifestações culturais.

O “gênero”, sugerido pela política atual, suas palavras e objetos citados são de outra natureza. Desprezam o sentido, a circunstância ou mesmo a ideia de enredo. O realismo mágico, histórias de horror, de crime e guerra são instrumentos utilizados (parcialmente) para despertar, de supetão, o medo, a ansiedade e a tensão de quem vê, lê ou escuta. O envolvimento da ficção provocado pela pergunta quem matou, ou pelo medo, gerado por fantasmas ou assassinos em série, resulta em emoções estimulantes. Não se confundem com um raciocínio matemático simples, do tipo um mais um, ou causa e consequências, sugerindo uma pacata continuidade.

A presença de um projeto político com base em informações retiradas do tarô, conselhos oferecidos por cachorros falecidos, assassinatos cometidos por marteladas em instituições como o Banco Central e o assombramento gerado por interferências no processo eleitoral democrático são parte deste novo invólucro estético-fragmentário da política da direita.

Ideias políticas abstratas, análises de conjuntura e estrutura, políticas econômicas associando o preço do pão (tema presente na Revolução Francesa) à vida das famílias mais necessitadas, só despertam sono nas discussões políticas. É mais ou menos como sugerir um namoro declamando versos da Lírica de Camões. Não há possibilidade de sedução usando a velha retórica. A acusação da vítima (namorado/namorada) será falta de sensibilidade do pretendente. Versos de Camões não dá! Nenhuma narrativa voltada para a explicação dos vínculos entre a realidade e a fantasia, romantismo ou livre-arbítrio é bem-vista no novo modelo político. Continuidade e enredo devem ser evitados. O risco é de vida ou morte. Explicou, morreu. Análise política só depois das 11h30. Supostamente crianças e adolescentes não devem ter acesso a hipóteses e suas explicações. Deve ser perigoso ou gerar mudança de canal. Suposições inúteis sobre quem será o próximo ministro podem ser matéria antes das 11h. Até hoje ninguém conseguiu me explicar a lógica. Talvez um fantasma explique.

Fragmentos, verdadeiros ou falsos, se adaptam bem aos filmes de horror, aos romances policiais e ao realismo mágico. São indícios do crime. Quanto pior a qualidade do material apresentado, mais absurdo e de fácil consumo, melhor para o novo político prender a atenção do público. A habilidade do comunicador é cooptar o receptor por meio de histórias por medo, naufrágios e líderes do mal. Os ingredientes são tensão, desconhecimento da origem das forças malignas (natural ou sobrenatural) e medo do desconhecido. O objetivo final, de tristes consequências, é desmantelar os vínculos entre a realidade e a fantasia.

Imaginem dois candidatos disputando uma eleição. De um lado, uma panela de pressão e, de outro, uma motosserra. O primeiro, o da panela de pressão, procura explicar para o eleitor seu intento de melhorar a renda da população carente. Encadeando as ideias, o velho político explica seus projetos de distribuição de renda, a importância de um Estado do bem-estar social com a finalidade de colocar feijão na mesa de todos. Com mais renda, todos poderão comer feijão e até picanha (causa e efeito). O outro candidato, da motosserra, propõe cenas e cortes. Começa com o assassinato do Banco Central com requintes de crueldade econômica. Depois, como não pode faltar sangue, o charme da história envolve a venda de órgãos humanos, de pessoas vivas, favorecendo o sequestro de parte da população para este fim. Cenas marcantes televisionadas indicam a presença de fantasmas. Um pouco de realismo mágico pode favorecer o total desencantamento em relação às pessoas vivas, reais, em favor de entidades poderosas, super-heróis, invisíveis, sobrenaturais, salvadores da pátria.

Histórias aos pedaços do tipo tiroteios e máscaras de palhaços assassinos fazem sucesso.

Na Argentina e no Brasil, a venda de armas é tema. Violência em cena. Existem diferenças entre os dois países, assim como existem semelhanças entre Brasil, Argentina e Estados Unidos. Qual seriam elas?

No Brasil, uma classe média com educação precária obteve ascensão social. Na Argentina e nos Estados Unidos, a classe média, já estruturada, perdeu poder de compra. Ocorreu, em matéria de renda, o contrário — empobreceram. Seus desejos de consumo não foram satisfeitos e, especialmente no caso argentino, ocorreu uma pauperização da sociedade seguida da construção de um imenso muro cultural separando a classe média das elites empoderadas.

O que é comum em todos estes países?

Uma profunda descrença na linguagem política tradicional, na qual estava embasada o funcionamento da democracia, permitindo, mesmo com os populistas, o uso do contraditório, projetos políticos em confronto.

Quem são os autores desta nova linguagem capaz de colocar em xeque a política com base em projetos políticos? Uma nova classe média, mais rica (EUA) ou mais pobre (Brasil), educada em meio às redes sociais com direito de fala à sua maneira?

A vingança veio a galope com armas, motosserra e um exército de fantasmas, jacarés e cachorros, todos eles com nomes de economistas (Murray Rothbard, Milton Friedman e Robert Lucas).

Por que a direita, diferentemente da esquerda, incorporou com rapidez as mudanças na linguagem?

Uma hipótese: a esquerda e o centro geraram, ao longo dos séculos 19 e 20, manifestações culturais, utilizando diversas linguagens renovadoras, modernistas. Consolidaram suas fronteiras agregando um segmento social com perfil inteligente, bem-informado, nacional e internacionalmente, neutros em termos religiosos, revolucionários em relação aos costumes e com trânsito em diferentes esferas do poder e da vida econômica e, principalmente, cultural. A tendência foi erguer um muro intransponível, em matéria de costumes e cultura, discriminando as classes médias, as vezes enriquecida, mas sempre “rústicas” e conservadoras. A segregação cultural talvez seja a mais violenta de todas, porque quase intransponível. As elites preferiam, do alto de suas mansões, olhar com binóculo os recém-chegados, a nova classe média, às vezes enriquecida, às vezes empobrecida, religiosa, recatada e autoritária, excluída por mais de dois séculos das redes de poder político, econômico e, principalmente, cultural.

A ascensão social de uma nova classe média e a presença das redes como um espaço aberto para todos, sem lei, trouxe à tona um desejo represado por séculos, dessas camadas sociais, para usufruir as “benesses” da sociedade de consumo, o exercício do mando e a elegante diferenciação social em todos os seus matizes.

Existem mil motivos para um milhão de ressentimentos.

Desejos de desigualdade eclodiram.

As redes permitiram a estes segmentos, humilhados, realizar o sonho impossível.

Impor para as elites, arrogantes de sua própria cultura política e estética, a sua maneira cafona, autoritária e desigual de olhar o mundo. Ditar um repertório composto de motosserras, fantasmas, jogos de azar, tarô, armas, cachorros, com nomes de economistas vivos ou mortos, qualquer coisa ou ideia absurda capaz de seduzir e divertir a sua multidão, a maioria.

A extrema direita finalmente encontrou a arma para realizar a vingança de forma lenta, cruel e com sangue (covid). A vingança contra o maior legado iluminista da modernidade: a razão.

“E agora, José?
(…)
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
(…)”
Carlos Drummond de Andrade, José.

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