Hora de reduzir os homicídios das polícias no Brasil

Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

 09/03/2023 - Publicado há 1 ano

Em 1960, São Paulo tinha registrado apenas um homicídio praticado pela polícia ao longo do ano. Cinco anos depois, foram dois. A cidade crescia de forma acelerada, recebendo migrantes das zonas rurais brasileiras que vinham trabalhar nas indústrias, sem que o governo estivesse preparado. Havia medo e insegurança diante do aumento das taxas de crime. Um dos instrumentos para lidar com essa situação foram políticas de segurança improvisadas e destrambelhadas, que produziam mais violência e injustiça. Apostava-se no policiamento territorial e ostensivo, de responsabilidade da Polícia Militar, concentrado nos bairros vistos como perigosos, com foco em abordagens e na prisão em flagrante de jovens pobres e negros, causando superlotação nos presídios e crescimento da letalidade policial. Enquanto isso, a Polícia Civil, responsável pela investigação criminal, perdia cada vez mais espaço e prestígio.

Os homicídios praticados pela polícia deixariam de ser exceção para tornarem-se a regra. Havia uma crença velada por parte da sociedade de que a violência policial podia produzir ordem e obediência nos bairros pobres. Esses homicídios eram vistos como uma solução, não como um problema; a forma mais eficiente de proteger as populações dos bairros centrais da ameaça vinda da parte pobre da cidade. Essa perspectiva se refletia nos números. O ápice do descontrole foi durante o governo de Antonio Fleury Filho, com 1.140 homicídios em 1991. No ano seguinte, quando aconteceu o Massacre do Carandiru (ocorrência em que 111 presos foram executados por policiais dentro de um presídio), a polícia paulista matou 1.470 pessoas, um recorde histórico que nunca mais foi ultrapassado.

O Primeiro Comando da Capital (PCC) nasceu em 1993, um ano depois do Massacre do Carandiru, nesse cenário de abusos e excessos da polícia. A facção nascente defendia que o crime deveria se unir para enfrentar seu inimigo principal, a polícia e o Estado. A ilegalidade usual na ação dos policiais motivou o discurso de união dos criminosos. Até 2001, o Estado negava a existência do PCC, dizendo que era invenção da imprensa. A situação só mudou depois da primeira megarrebelião, em fevereiro de 2001, com o levante simultâneo em 30 presídios. Não era mais possível negar a existência do grupo.

O Grupo de Repressão e Análise aos Delitos de Intolerância (Gradi) nasceu na tentativa de dar resposta às ações do PCC. A Polícia Militar assumiu informalmente o papel de polícia judiciária e, junto com o governo de São Paulo, praticou diversas ilegalidades a fim de investigar e eliminar os suspeitos. A medida foi um desastre. Culminou com o Caso Castelinho, ocorrido em 5 de março de 2002, quando 12 pessoas foram mortas em uma ocorrência planejada e executada pela PM. Os infiltrados pela polícia simularam um roubo inexistente, que ocorreria em um avião-pagador em Sorocaba. Juntaram uma quadrilha e foram ao local do assalto. Na Rodovia Castelinho, em Itu, eram esperados por uma centena de policiais, que os executaram. Muitos vibraram com a ação, inclusive o governo. O plano de barrar o PCC, contudo, mais uma vez fracassou. Sem inteligência ou troca de informação entre as instituições, a facção deu novos passos. Continuou a crescer e passou a atuar no mercado atacadista de drogas, alcançando fornecedores na América do Sul para vender drogas e armas para outros estados e países.

No começo do mês passado, no dia 8 de fevereiro, ocorreu na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, na Costa Rica, o julgamento sobre a omissão do Estado brasileiro na investigação do Caso Castelinho. Durante a audiência, os defensores públicos Fernanda Balera, Antonio Maffezoli, Davi Quintanilha e Surraily Youssef representaram os 43 familiares das vítimas. A irmã de um dos mortos na operação esteve presente. A promotora Vania Tuglio relatou os diversos problemas que atrapalharam a investigação e o esforço do Ministério Público para driblar essas barreiras. Estive na audiência como perito para descrever como a violência policial continuou a ser usada como ferramenta de trabalho por polícias militares de diversos Estados brasileiros e como os velhos erros continuam se repetindo.

Essa mentalidade de guerra ao crime nos bairros pobres das cidades brasileiras se espalhou pelo País, em políticas de segurança pública que também apostaram no patrulhamento ostensivo e na prisão em flagrante feitos pelas polícias militares estaduais. Como resultado dessa estratégia de patrulhamento ostensivo para realizar prisões em flagrante, os homicídios praticados pela Polícia Militar cresceram fortemente no Brasil. As mortes em supostos confrontos passaram de 3.330 em 2015 para 6.160 em 2018, ficando nos últimos quatro anos sempre acima da casa das seis mil ocorrências.

É preciso repensar esse modelo contraproducente, que vem gerando aumento da violência policial, prisões superlotadas e contribuindo para o fortalecimento de mais de 50 gangues prisionais em todos os Estados, que gerenciam o tráfico e outras atividades a partir das prisões, mimetizando o modelo criado pelo PCC.

Além da grande quantidade de vítimas fatais, de injustiças e de tragédias familiares, a tolerância a esses homicídios policiais tem levado os Estados a perderem o controle de suas polícias militares. A violência policial é irmã da corrupção. Quase sempre, o policial que tem autorização velada para matar acaba usando esse poder para enriquecer com o crime. A violência policial foi uma das sementes das milícias no Rio de Janeiro, facção formada por policiais que se tornou a mais poderosa do Estado. O modelo das milícias – parcerias da polícia com o crime – passou a se espalhar pelos Estados.

O governo Lula pode aproveitar para se antecipar à sentença na Corte Interamericana e tomar iniciativas para ampliar o controle sobre a violência policial no Brasil. O controle da violência policial deve ser prioridade política para que os governos retomem o controle de suas polícias. Reduzir os homicídios policiais significa controlar a polícia e diminuir seu protagonismo no fortalecimento do crime. Entre as políticas possíveis, é possível ter um plano nacional com metas de redução de letalidade; criar ouvidorias autônomas, externas, independentes, com poderes de investigação e de fiscalização. O uso das câmeras nos uniformes, em São Paulo, tem apresentado resultados positivos e aumentado o controle sobre a atividade policial. É uma experiência que merece atenção, prosseguimento, e deve ser replicada em outros Estados. O lobby para interrompê-la, contudo, já é forte, assim como os riscos de sabotagem. Em janeiro deste ano, os dados de letalidade policial apontaram um crescimento importante de casos de morte praticada por policiais militares durante a folga. Caso a tendência se confirme, cabe a dúvida se os dados refletem uma tentativa de burlar a fiscalização das câmeras. Muita gente ganha dinheiro e poder político com o medo e a promessa de guerra contra o crime nas cidades. É preciso avançar, sempre atento aos riscos de retrocessos.

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