Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os registros de homofobia e transfobia enquadrados na Lei do Racismo contaram com um aumento de 54% em 2022 em relação ao ano anterior. Entre os crimes que não foram enquadrados na legislação racial, o delito de lesão corporal foi o que apresentou o maior número de registros — com 2.324 casos —, seguido pelo estupro — 199 casos — e pelo homicídio doloso — 163 casos.
Seis Estados nacionais não forneceram dados sobre crimes contra a comunidade LGBTQIA+, sendo provável que os dados fornecidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (responsável pela publicação do anuário), apesar de contribuírem com a compreensão do cenário, estejam subestimados.
Aumento
Renan Quinalha, doutor em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e pesquisador dos estudos de gênero, direitos humanos e democracia, explica que é difícil mapear os motivos para o aumento dos casos de homofobia e transfobia, já que esse é um registro muito recente no histórico nacional. “Os dados que nós temos, em geral, são feitos pela própria comunidade, pelo movimento e pelas entidades, o que tem dificultado uma série histórica mais confiável”, analisa.
Por outro lado, o especialista destaca a recente criminalização da homofobia e da transfobia feita pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2019. “Nós começamos a ter uma produção de dados oficiais e estatais, antes nós não tínhamos. Apenas alguns Estados tinham inserido esse tipo de qualificação em boletins de ocorrência, mas isso era muito raro e agora passa a ser algo mais comum e presente”, reflete Quinalha.
Dessa forma, é importante a ponderação de que, apesar da presença de um possível aumento da violência — considerando uma sociedade que segue perpetuando a naturalização de crimes contra pessoas LGBTQIA+ —, é também possível associar o aumento dos casos ao maior número de notificações que estão chegando ao sistema de justiça.
Desafios
Quinalha comenta ainda que, atualmente, o principal desafio encontrado no combate à LGBTfobia associa-se ao rompimento de obstáculos de acesso à justiça. Por sua vez, essa barreira está diretamente ligada a questões econômicas, culturais, regionais e de classe. Assim, a dificuldade desses sujeitos de acessar seus direitos e a falta do tratamento adequado de agentes públicos do sistema de justiça, em muitos casos, acabam retraumatizando a vítima quando deveriam utilizar o acolhimento e encaminhar os casos para a apuração.
Para além dessas questões, um aspecto importante que apresenta relação direta com a questão é o crescimento da extrema-direita em diferentes partes do mundo. Segundo o especialista, esse avanço tem sinalizado para uma LGBTfobia institucional cada vez mais marcada, que colabora com o avanço de perseguições mesmo em países que já tinham avançado no reconhecimento dos direitos dessa comunidade.
“Eu acredito que esse movimento internacional tem rebatido no Brasil, tomou a forma do bolsonarismo aqui e, sem dúvida nenhuma, recrudesce esses discursos de ódio. Ele dá mais espaço na sociedade, no debate público e nas redes sociais para esses discursos circularem”, adiciona o pesquisador.
Alessandro Soares, líder do grupo de pesquisa em Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP) e de Políticas Públicas, Territorialidades e Sociedade do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP), explica que o retorno do conservadorismo no País colaborou com a construção de uma visão extremamente negativa de sexualidade. “Há uma naturalização de uma visão de sexualização destoante, discordante, desviada e não normal em relação às multiplas sexualidades no espectro LGBTQIA+”, debate o professor.
Melhorias
Outro problema associado a essa discussão é a dificuldade de ampliação do debate e das informações acerca das formas de denúncia para essas ocorrências. Assim, é também possível observar que há uma tolerância enraizada associada aos casos de LGBTfobia. “Ainda existe muito essa visão de que a gente está falando de liberdade religiosa e de que se está contrapondo a liberdade de expressão das pessoas. Isso acaba fazendo com que as pessoas não conheçam os seus direitos e tolerem certas situações”, afirma Quinalha.
Por esse motivo, o pesquisador reflete que campanhas educativas e materiais informativos fazem-se necessários para que essas pessoas possam saber a quem recorrer. Ao lado disso, é essencial treinar os agentes públicos para que as demandas possam ser devidamente acolhidas e encaminhadas para a investigação. “Eu acredito que as políticas públicas passam por educação, por cultura, por respeito aos direitos humanos e por assistência social à população LGBTQIA+. Sobretudo, também por uma melhoria desse parâmetro do direito discriminatório com uma melhor qualificação dos agentes públicos”, finaliza ele.
Políticas públicas
Soares adiciona também que a sexualidade não pode ser objeto de preconceito, segregação e, menos ainda, violência. Por esse motivo, é necessário que os aparelhos jurídicos sejam utilizados corretamente para garantir a proteção de direitos desses indivíduos. “Quando o legislador não atua em defesa dos direitos dessa população, ele mantém a porta aberta para o avanço do pensamento conservador e de políticas que são propagadoras de violência”, afirma.
Com isso, o especialista explica que é necessário que o Poder Legislativo esteja consciente dos seus deveres enquanto protetor dos direitos desses sujeitos, além da presença de executivos que pensem as políticas públicas de maneira a garantir direitos no âmbito da saúde, da educação, da segurança pública, etc. “Se a diversidade não for reconhecida como direito, nós nunca vamos superar essas desigualdades que têm como foco a morte e a exclusão de tudo aquilo que não é reconhecido como digno de vida”, adiciona o professor.
Por fim, é necessário também que as ações governamentais passem a tratar a violência de gênero e a violência contra a população LGBTQIA+ de forma integrada, já que a segunda apresenta-se de forma diretamente associada à primeira. “Não há como constituir uma superação da luta e da defesa dessas pessoas se nós não avançarmos também na proteção de pautas relacionadas às mulheres”, finaliza Soares.
Assim, a segmentação das partes, para o especialista, contribui com o enfraquecimento da luta e da busca por direitos, já que, em muitos casos, as lutas sociais devem ser abordadas e tratadas por meio de uma perspectiva de interseccionalidade.
*Estagiária sob supervisão de Paulo Capuzzo
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