Complexidades da Cracolândia e a necessidade de um olhar mais humanizado

Marcelo Nery, Thiago Calil e Arthur Guerra admitem que o problema da Cracolândia é singular, discutem as alternativas já propostas e propõem soluções para tentar ao menos minimizá-lo

 31/08/2023 - Publicado há 1 ano
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A complexidade intrínseca ao cenário que se assentou na região central da metrópole demorou a ser percebida pelo Estado – Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
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Existente desde a década de 1990, a Cracolândia se estabeleceu como um problema público que se movimenta na cidade, ou seja, um fluxo de pessoas usuárias de drogas que, de tempos em tempos, migra para diferentes localidades. Além disso, a problemática, sobretudo, envolve uma alta complexidade com diversas frentes de combate, como segurança, saúde pública e urbanística.

No entanto, há um foco maior nas políticas de segurança baseadas em ações policiais, que nem sempre são as mais efetivas quando aplicadas isoladamente. Dados divulgados pelo Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo demonstram alguns aspectos nebulosos das ações policiais na Cracolândia. A pesquisa revelou que cerca de 90% das prisões realizadas na região em 2022 foram consideradas ilegais e arquivadas pela Justiça.

Marcelo Batista Nery – Foto: IEA-USP

“É necessário uma ação efetiva das forças policiais, mas, além disso, é preciso compreender os problemas associados aos indivíduos e suas vivências, a falta de apoio do poder público e o fato de que, naquele contexto, os grupos acabam encontrando uma certa segurança, uma vez que as pessoas têm o mesmo problema”, destaca Marcelo Batista Nery, coordenador de Transferência de Tecnologia do Núcleo de Estudos da Violência e pesquisador do Instituto de Estudos Avançado da USP. 

Olhar histórico 

A complexidade intrínseca ao cenário que se assentou na região central da metrópole demorou a ser percebida pelo Estado e ainda caminha por linhas tortas a cada governo que é escolhido para liderar. Thiago Calil, redutor de danos e doutor em Saúde Pública pela USP, explica que, desde seus primórdios, a visão dos jornais e da grande mídia disseminava uma imagem limitada a um problema de tráfico de drogas e crime.

Thiago G. Calil – Foto: Arquivo Pessoal

“Havia uma questão mais em relação ao proibido e o poder público estava muito presente por meio da segurança pública, a polícia sempre esteve muito presente ali”, observa Calil. Outro ponto levantado por Batista Nery consiste no uso histórico da violência policial, não apenas no contexto da Cracolândia, mas em diversos segmentos da sociedade. A partir da herança militarista oriunda do regime autoritário, as ações policiais são, predominantemente, orientadas para o conflito e não para a mediação. 

Essa visão restrita da Cracolândia se perpetuou até os anos 2000, quando a concentração de pessoas na rua que faziam o uso de crack passou a se relacionar com o mercado imobiliário do centro de São Paulo. Assim, o especialista em Saúde Pública comenta que um novo projeto de revitalização da região passou a ser pensado, o que abriu espaço para o avanço de discursos eleitoreiros. 

Operação policial na Cracolândia – Foto: Rovena Rosa/Agância Brasil

 

“A situação vai sendo compreendida ali como uma ferida social, um machucado urbano que precisava urgentemente ser estancado”, reflete Calil. No decorrer de diversas campanhas políticas, começou a ser construído um slogan superficial em torno da solução da Cracolândia, deixando em segundo plano as pessoas que precisam de atenção e cuidado do Estado. Além disso, Calil ressalta o preocupante papel da violência como protagonista de muitas das políticas voltadas tanto para a saúde quanto para a segurança. 

Olhar da saúde pública 

Arthur Guerra, professor da Faculdade de Medicina da USP, aponta que a parte mais desafiadora para o técnico de saúde mental é tentar mostrar ao paciente a importância do tratamento, visto que, muitas vezes, o indivíduo encontra-se em um estado de extrema vulnerabilidade. O professor também afirma não existir um consenso, especialmente no campo da psiquiatria, sobre qual modelo de política pública sanitária é mais eficaz, além de notar certos extremismos acerca da adesão às duas principais vertentes de tratamento: redução de danos ou abstinências e internação.

Arthur Guerra – Foto: Arquivo Pessoal

“Ao discutir a questão, esbarra-se em uma questão social, porque a vida na rua é uma vida muito dura. E deve ser muito difícil se cuidar quando não há onde dormir. E, nesse contexto de rua, o consumo de drogas pode ganhar novos sentidos que desafiam a lógica sanitária da saúde”, considera Calil. Dessa forma, ambos os especialistas mencionam o forte vínculo da questão habitacional com o consumo de drogas na Cracolândia. 

Thiago Calil esclarece que, em uma situação sensível como a dos usuários, o uso de drogas pode ganhar sentido de pertencimento, de conforto, de proteção, de sociabilidade ou, inclusive, de amortecer as dores desse cotidiano tão duro nas ruas. “A perspectiva da redução de danos, assim, tira o foco da substância. Então, ela está menos preocupada se essa pessoa usa ou não usa e foca mais na qualidade de vida da pessoa”, pondera o especialista. Outra característica da política de redução de danos é ofertar formas plurais de cuidado que preservem a singularidade de cada um no processo do tratamento. 

Acolhimento de usuários de drogas no Centro de Convivência Prates – Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

 

As principais políticas de saúde mental mencionadas por Guerra compreendem os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), em que grupos multidisciplinares de médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais olham para o indivíduo de uma forma bastante humanizada e integral. Essa possibilidade para que ele possa se tratar em relação ao tema drogas demonstra, na visão do médico, uma preferência do modelo Caps, uma vez que, quanto mais a pessoa puder ficar no local onde vive com seus pares e menos na internação hospitalar, maior o sucesso desse modelo. 

Por outro lado, Guerra também cita, em casos mais graves de desintoxicação, o regime hospitalar, e ainda uma terceira opção, que consiste no Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (Siat), uma espécie de casa de transição em que a pessoa pode se hospedar e se afastar do fluxo e uso de drogas. 

Olhar humanizado 

A imagem tradicionalmente disseminada pela cobertura da Cracolândia na grande mídia, em sua maioria sob um viés degradante, impacta diretamente o tratamento das pessoas, visto que, segundo o professor, favorece a propagação de um preconceito acerca dos usuários de drogas. “O tema drogas legais ou ilegais traz consigo um estigma, como se o indivíduo ficasse com essa dependência não porque ele estivesse doente, mas sim porque ele teria ‘uma falta de ânimo e vontade’”,  explica Guerra. 

Calil estabelece o direito à moradia como um dos principais e primeiros passos para se pensar políticas públicas mais eficazes de cuidado integrado à comunidade, uma vez que humaniza os frequentadores da Cracolândia a partir de condições dignas de vida. Para isso, o entendimento da complexidade de fatores que levaram uma pessoa ao uso de drogas é essencial para desmistificar a problemática.

Em um cenário sem condenações morais, Calil considera o amplo diálogo com diversas áreas de políticas públicas para a melhora na qualidade de vida, já que, apesar de um papel mais evidente da saúde pública, as demandas se orientam por um pacote histórico de desigualdade econômica, política e muitas outras. “São diversas trajetórias de vida com sentimentos, alegrias, tristezas, esperanças e que, por diferentes motivos nas suas trajetórias, chegaram até a rua, mas, no senso comum, o que ecoa é essa imaginária do medo, do zumbi, do inimigo”, reflete o especialista.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo


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