O rancor e o ressentimento ainda são fortes no mundo

Renato Janine cita, como exemplo, a vitória de Javier Milei na Argentina, “um irresponsável que não propôs nada construtivo, fez uma campanha baseada no ódio e, no entanto, foi eleito”

 06/12/2023 - Publicado há 5 meses
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É quase uma tradição no começo de dezembro já se fazer um balanço do ano que findou e vou cumprir essa tradição. Este ano para o Brasil foi um ano muito positivo, nós tivemos o fim de um governo,  que fez do negacionismo tanto da ciência quanto da educação e dos valores éticos sua razão de ser.  Da ciência, o governo passado não apenas cortou substancialmente as verbas destinadas à ciência como, além disso, promoveu uma campanha de desinformação no tocante à covid. O mundo inteiro teve um conjunto de mortos que chega a 7 milhões de pessoas por causa da covid, para uma população global de 8 bilhões; então, menos de um por mil. No Brasil, com 203 milhões de habitantes, tivemos mais  de 700 mil mortos, nossa média teria sido em torno de 180 mil na proporção mundial, então mais de 520 mil pessoas morreram à toa, acima da proporção no planeta. Por que? Por causa das falhas do governo passado e até mesmo da campanha dele contra a vacinação e contra o distanciamento físico nos 12 meses antes da vacina  começar a ser aplicada.

Isso tudo já bastaria para dizer que foi um governo nefasto, mas é preciso acrescentar também que, durante todo o período da pandemia, embora o ex-presidente fizesse uma campanha contra os cuidados em face da pandemia, o Ministério da Educação não teve nenhuma ação para ajudar os alunos que estavam impedidos de ter aulas presenciais. Não destinou verbas para melhorar as antenas de internet nas periferias, não ajudou na aquisição de smartphone ou tablet, ou laptop, às crianças e adolescentes pobres, então foi uma devastação educacional. Do ponto de vista ético, é claro que promover a mentira, promover a negação da ciência , hostilizar jornalistas – quando eles cobrem fatos realmente ocorridos -, tudo isso é antiético, não tenho a menor dúvida, bem como promover a morte desnecessária.

Diante disso, nós tivemos uma mudança de governo e nós estamos tendo uma reconstrução do País, que está difícil, está difícil porque as sementes do ódio foram plantadas de maneira muito profunda e está difícil conseguir que o negacionismo seja vencido, esse é um grande desafio que temos. Mesmo assim, várias ações governamentais estão sendo recompostas. Eu lia ontem no jornal inglês The Economist, um jornal de direita é bom frisar, um longo artigo sobre a questão da Amazônia brasileira. A revista obviamente apoia Lula, apesar de ser uma revista de direita, e condena Bolsonaro,  mas diz que um problema enorme é a regularização da propriedade das terras da Amazônia, que faz com que às vezes haja títulos que foram emitidos irregularmente de propriedade em terras que são indígenas, que haja às vezes mais do que dois ou três donos da mesma terra, então um grande problema que o Ministério do presidente Lula está enfrentando.

Nós temos este ano toda uma tentativa de recomposição do laço social, que ficou tão esgarçado nos últimos anos, mas continua havendo não só no Brasil, mas em escala mundial, um risco de volta desses governos do ódio. A recente vitória de Milei, na Argentina, é um exemplo disso, é um irresponsável que não propôs nada construtivo, fez uma campanha baseada no ódio e, no entanto, foi eleito. E agora, se ele for aplicar o que prometeu, vai ser um desastre, mesmo que ele não aplique tudo o que prometeu, vai provavelmente ser um desastre. Porque toda a contenção de inflação das que eu acompanhei passou por uma perda de poder aquisitivo, desemprego,  uma série de problemas que se agravam –  com sorte, quando isso é bem conduzido, depois as situações se recuperam, geralmente é mais difícil; no Brasil, passamos por várias tentativas até que a última emplacou, então nós estamos num momento em que “a semente do ódio”,  o rancor, o ressentimento ainda são fortes no mundo.


Ética e Política
A coluna Ética e Política, com o professor Renato Janine Ribeiro, vai ao ar quinzenalmente, quarta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9) e também no Youtube, com produção da Rádio USP,  Jornal da USP e TV USP.

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