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Do campo ao Museu do Futebol: a luta das jogadoras por representatividade
Pesquisa da USP explora como a trajetória de inclusão do futebol feminino dentro do Museu do Futebol contribuiu para dar visibilidade à modalidade
Invisibilização do futebol feminino no Museu do Futebol incentivou pesquisadora a desenvolver um estudo sobre o tema no MAE da USP - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Inaugurado em 2008, o Museu do Futebol abriu suas portas para o público com apenas uma jogadora representada em seu acervo de longa duração. A menção ao futebol feminino se limitava à figura de Marta, que já tinha sido eleita como a melhor jogadora do mundo duas vezes pela Federação Internacional do Futebol (Fifa), em 2006 e 2007. Atualmente, ela já foi eleita seis vezes. A ausência de mulheres também estava refletida no público visitante. De acordo com uma pesquisa de público feita pelo museu em 2009, 70% eram homens.
Essa invisibilização incentivou Renata Beltrão, coordenadora de Comunicação e Marketing do Museu do Futebol e do Museu da Língua Portuguesa, a desenvolver a pesquisa Chama as mina pro jogo: Museologia e gênero no Museu do Futebol. O mestrado foi defendido no Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, dentro do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Museologia (PPGMUS).
Para entender como as mulheres estavam inseridas no espaço do Museu do Futebol, a pesquisadora estudou o processo de criação da instituição, desde a sua inauguração até a realização da exposição CONTRA-ATAQUE! As Mulheres do Futebol, em 2019. A mostra expôs o período da proibição do futebol feminino por quase 40 anos no Brasil: de 1941 até 1979.
“Você sempre escuta discursos de que o futebol feminino não tem público e que a seleção feminina nunca ganhou uma Copa porque as brasileiras não jogam bem. Isso não vem do nada. Eu já tinha um incômodo com a falta de apoio, mas o que mais me marcou foi entender a dimensão da proibição e como essa história foi apagada”, conta Renata.
O trabalho utiliza o termo “futebol de mulheres”, em vez de futebol feminino, por considerar que o segundo termo carrega um ideal socialmente construído sobre como uma mulher deveria ser e se comportar.
Sem mulheres desde o nascimento
No momento de idealização do museu, a Fundação Roberto Marinho convidou jornalistas da grande mídia esportiva e especialistas para reuniões sobre a criação do espaço. Nessas discussões, a inserção do futebol feminino nunca foi abordada, principalmente porque a modalidade não estava na pauta da imprensa esportiva. O único comentário direcionado a essa questão partiu de Paulo Bonfá, então apresentador do programa Rockgol da MTV. Ele levantou a relevância de ter um público feminino, mas o apontamento não foi levado adiante. A jogadora Marta foi a única exceção. “Naquela época, [Marta] já tinha sido eleita a melhor do mundo duas vezes, então sua presença foi incontornável”, aponta a pesquisadora. Havia mulheres retratadas, mas não como atletas de fato. “Eram donas de casa, atrizes e modelos, não tinha jogadoras”, comenta.
Essa situação só mudou em 2015, com o projeto Visibilidade para o Futebol Feminino. Nessa época, o movimento feminista e mobilizações contra o assédio ganhavam força nas redes sociais. Além disso, havia uma inquietação em relação ao local em que o Mundial Feminino seria realizado. “Com o final da Copa Masculina de 2014, a grande pergunta era: por que a Copa Feminina não aconteceria no Brasil, sendo que havia 12 estádios novos aqui? Então, a organização surge desse incômodo. Alguns visitantes também apontaram a falta do futebol feminino nas pesquisas de público. De vez em quando aparecia alguma reclamação sobre a ausência do futebol de mulheres”, lembra Renata.
A exposição Visibilidade foi marcada pela inclusão de histórias, itens e imagens do futebol feminino na mostra de longa duração, que permanece em exibição até hoje. Os itens adicionados foram identificados com uma medalha dourada de fita roxa, cor associada ao movimento feminista. “Na Sala dos Anjos Barrocos, que apresenta projeções dos jogadores como se eles estivessem flutuando, foram incluídas Marta, Formiga e, mais tarde, Cristiane e Sissi. A Sala das Origens foi a mais modificada pelo projeto. Entraram várias imagens de mulheres jogando futebol no começo do século. As mudanças trouxeram outra narrativa sobre o futebol, mostrando que as mulheres também jogavam bola”, menciona.
Para Renata, a exposição promoveu um “hackeamento” do futebol feminino, termo defendido pela pesquisadora no sentido de gerar alguma mudança social. “A ideia de hackeamento, em um sentido mais guerrilheiro, significa colocar uma coisa em um lugar inesperado. É abrir uma brecha no sistema e questioná-lo por dentro”, explica.
Mudança de cenário
Se antes o museu era frequentado majoritariamente por homens, CONTRA-ATAQUE! (2019) ajudou a mudar esse cenário. Em 2023, o público feminino chegou a ultrapassar o masculino com a exposição temporária Rainhas de Copas. A mostra retratou as conquistas e a trajetória da modalidade ao longo dos mundiais, desde 1988, quando foi realizado o primeiro torneio mundial feminino experimental na China.
“Com a falta de representação de mulheres, o Museu do Futebol estabelecia uma performance de gênero no seu discurso com a ideia de que mulheres não jogam bola. Então, dentro de uma perspectiva feminista, a CONTRA-ATAQUE! foi muito importante, porque proporcionou uma tomada de consciência pelos visitantes. Era comum ver mulheres saindo da exposição com raiva. Acho que o público começou a entender o motivo da desigualdade gritante entre o futebol masculino e feminino.”
Antes da organização de CONTRA-ATAQUE! o museu não contava histórias da proibição. A própria equipe, composta majoritariamente de mulheres, não estava ciente desse período. O marco dessa época se limitava a uma placa na Sala Números e Curiosidades, que inclusive continha informações erradas referentes ao ano do decreto e da regulamentação. De acordo com a placa, o futebol feminino tinha sido proibido em 1964, durante a ditadura militar, porém nesta data o esporte já estava posto como ilegal para as mulheres há mais de 20 anos.
Impedidas de jogar
Em 1941, o futebol de mulheres foi proibido no Brasil por um decreto-lei aprovado por Getúlio Vargas. A medida impedia as mulheres de praticarem o esporte com a justificativa de que a modalidade não era adequada ao corpo feminino.
No artigo 54 do decreto-lei constava o seguinte: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”. Essa natureza se pautava na reprodução feminina e a possibilidade de prejudicar a capacidade de ter filhos. “Com a modernidade, havia um ideal de nação que para as mulheres significava serem mães e boas esposas. Foi usado o argumento médico, que defendia que a mulher que jogava futebol podia ter suas funções reprodutoras prejudicadas”, explica Renata.
Em 1940, antes do decreto entrar em vigor, mulheres entraram em campo num jogo de inauguração da iluminação do Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Duas equipes suburbanas do Rio de Janeiro, o Casino do Realengo e o Sports Club Brasileiro, fizeram uma partida preliminar de um jogo do São Paulo contra o Flamengo. O jogo reuniu 65 mil pessoas nas arquibancadas e é considerado um estopim para a proibição.
Mesmo com o impedimento legal, os jogos ainda aconteciam, com formas de driblar a legislação existente. “Os jogos aconteciam disfarçados de eventos beneficentes ou de entretenimento. Outra alternativa eram os jogos das vedetes, atrizes, para arrecadar dinheiro, mas o tempo de jogo era menor e não havia atletas jogando, pois não podiam existir atletas”, explica.
Em 1958, surgiu a primeira equipe de futebol feminino do Brasil, o Araguari Atlético Clube, no interior de Minas Gerais. O time nasceu com a realização de uma partida de futebol de caráter beneficente. O jogo foi feito para angariar fundos para o Grupo Escolar Visconde de Ouro Preto. A partir daí, as competições foram um sucesso e as jogadoras Heloísa Marques, Zalfa Nader, Darci de Deus Leandro e Haidêe Dália Dias viajaram para diferentes municípios e estados para competir. Em 10 de maio de 1959, as jogadoras do Araguari realizaram uma partida em Belo Horizonte, no Estádio Independência, vestindo as camisetas do Atlético Mineiro e do América. Infelizmente, a equipe feminina durou só até 1959 devido às dificuldades impostas pelo decreto-lei.
“A carta da proibição sempre era jogada quando as mulheres chegavam a um patamar competitivo de ganhar dinheiro. Então, a proibição era acionada quando começavam a ter visibilidade”, conta a pesquisadora.
Em 1982, houve uma partida de futebol feminino no Estádio do Morumbi. O jogo foi uma preliminar da disputa entre Corinthians e São Paulo. O evento estava inserido na programação do 1º Festival Nacional das Mulheres nas Artes, organizado pela atriz Ruth Escobar. Na ocasião, as jogadoras tiveram sua entrada em campo barrada, e os jogadores Sócrates e Casagrande intervieram afirmando que não iriam jogar se as atletas não pudessem. Ruth Escobar também ameaçou que as mulheres da arquibancada invadiriam o gramado caso as seleções femininas não entrassem em campo. Mesmo em meio a protestos, o jogo aconteceu, mas com tempo reduzido e caracterizado como uma partida beneficente.
O decreto da proibição foi revogado em 1979, mas a modalidade feminina só foi regulamentada em 1983. Esse período resultou em um processo de apagamento do futebol de mulheres, além de prejudicar a visibilidade e o desenvolvimento da modalidade, que recebe muito menos investimentos e estruturas em comparação com o masculino. A primeira Copa do Mundo Feminina foi realizada somente em 1991, organizada pela Fifa e sediada na China.
Novas representações
Atualmente, o Museu do Futebol está passando por reformas para ampliação do acervo de longa duração e criação de novas salas. De acordo com Renata, todas as copas femininas serão adicionadas à Sala Copas do Mundo. Nesse mesmo ambiente, também está prevista uma parede lateral dedicada à história do futebol feminino durante a proibição, que mostrará como as mulheres resistiram e seguiram jogando bola. Uma nova instalação deverá mostrar gols interessantes de forma equilibrada em relação à representação de homens e mulheres, além de incluir pessoas com deficiência e jogos na várzea.
A nova Sala Raízes pretende abordar o período de popularização do futebol a partir do rádio e de revistas, além do contexto que resultou na proibição do futebol feminino. A Sala das Origens também vai ganhar mais imagens e retratos sobre mulheres em campo.
*Estagiária sob supervisão de Tabita Said e Antonio Carlos Quinto
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
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