Os perigos da “pequena ciência”, o avanço tecnológico e o papel da academia face às políticas públicas

Por André Francisco Pilon, professor associado da Faculdade de Saúde Pública da USP

 Publicado: 07/05/2024
André Francisco Pilon – Foto: ResearchGate GmbH
Importantes vozes da ciência, em todo o mundo, vêm advertindo sobre os perigos de determinados tipos de pesquisas patrocinadas por corporações de negócio, que promovem investigações “de ponta”, geralmente envolvendo aplicações financeiras vultosas e lucrativas, a atrair aqueles que buscam ascensão rápida em suas carreiras e destaque jornalístico, apesar dos riscos envolvidos.

Embora investigação e inovação responsáveis (RRI) tenham emergido como abordagem e conjunto de práticas destinadas a integrar questões éticas e sociais na governança da ciência, inovação e tecnologia, as práticas existentes têm se centrado em certa medida em argumentos científicos e tecnológicos fora do contexto cultural, econômico, social e político implicado.

São inúmeras as vozes que apontam que a corrida por publicações e citações compromete a autenticidade e a integridade das práticas acadêmicas. Poderão estruturas de alta biossegurança exercer de fato um papel fundamental em relação a futuras epidemias e pandemias, tanto para atender a emergências quanto para a prevenção de novos surtos através da vigilância ativa?

Cada dia, novos produtos químicos são liberados em todo o mundo, aumentando a dose de substâncias nocivas ao meio ambiente e à saúde pública. Marc Lipsitch, professor de epidemiologia de Harvard, um crítico desse tipo de pesquisa, organizou um painel de especialistas internacionais em ciência, direito e ética, sobre urgentes medidas de biossegurança, o Cambridge Working Group.

A Sociedade Americana de Microbiologia alertou recentemente sobre a “geração de patógenos com propriedades que não existem na natureza, que podem ser mais patogênicas e/ou transmissíveis”. Cynthia Czajkowski, vice-chanceler para Pesquisa e Educação (UW-Madison), apoiou a supervisão transparente e rigorosa da pesquisa sobre patógenos, incluindo aqueles “com potencial pandêmico”.

Modificar patógenos de risco para torná-los mais prejudiciais durante a pesquisa tornou-se política controversa desde o surto de covid-19. Projeto de lei de Wisconsin (EUA) proíbe as instituições de ensino superior de realizar pesquisas sobre “patógenos potencialmente pandêmicos”; professores de genética, química e biologia quantitativa deram seu apoio a essa medida legislativa.

Potenciais agentes patogênicos pandêmicos são vírus e bactérias que, se libertados, podem propagar-se incontrolavelmente e potencialmente causar uma pandemia devastadora, esclareceu Justin Kinney, professor de biologia quantitativa do Laboratório Cold Spring Harbor e cofundador da Biosafety Now, organização sem fins lucrativos e que testemunhou a favor do projeto de lei.

Jesse Bloom, do Fred Hutchinson Cancer Research Center, considera a origem em laboratório do vírus da covid-19 “altamente plausível” – e Alina Chan, do Broad Institute, especializada em engenharia genética, compartilha da ideia de que pode ter existido vazamento em laboratório, não se tratando de mera coincidência que a pandemia tenha começado tão perto do Instituto de Virologia de Wuhan, na China.

O Centro Internacional para a Resolução de Disputas relativas a Investimentos (Cirdi), a principal instituição mundial dedicada à resolução de litígios em matéria de investimentos internacionais, vem sendo criticado face à falta de transparência em seus procedimentos e ao perfil de seus árbitros, envolvendo a proteção ambiental, o direito à água e os direitos das populações indígenas.

Para corrigir visões categoricamente erradas, Michael Crow, da Arizona State University, propõe uma educação transdisciplinar, em oposição a uma hierarquia de conhecimentos. Condena explicitamente as estruturas químicas existentes e as técnicas de fabricação que estão construindo, com o apoio da academia, milhares de moléculas carcinogênicas, eximindo-se de qualquer responsabilidade.

Substâncias químicas desreguladoras do sistema endócrino provenientes de produtos de consumo, produtos farmacêuticos, agricultura e produção industrial, detectadas em água doce, águas residuais e água potável, suscitam crescente preocupação quanto à integridade da saúde humana, dos ecossistemas e da biodiversidade, já ameaçados por um sem-número de fatores.

Além da enorme quantidade de emissões de gases de efeito estufa (GEE) que a indústria de plástico produz todos os anos (o equivalente a 168 milhões de automóveis movidos a gás nas estradas), os produtos químicos nocivos e tóxicos adicionados aos plásticos estão associados ao câncer e a outros impactos negativos para a saúde e o meio ambiente como um todo.

As empresas gigantes do plástico produzem milhões de toneladas de minúsculas partículas de plástico por ano. Estima-se que 230 mil toneladas acabem nos oceanos, poluindo o nosso ambiente durante séculos! Essas minúsculas partículas, usadas para fazer todos os objetos de plástico, são mortais. Os peixes confundem-nas com alimentos e os microplásticos acabam em nossos pratos.

Radiação eletromagnética vinculada à comunicação sem fio de última geração, alimentos ultraprocessados, agrotóxicos na lavoura, experimentos em biotecnologia, geoengenharia para tentar contrapor-se ao aquecimento global são outros problemas que vêm sendo objeto de crescente preocupação em termos de questões presentes e futuras (future proofing).

Além do alto consumo de carne bovina e alimentos ultraprocessados ser prejudicial à saúde humana e ao meio ambiente, em artigo recém-publicado no periódico Public Health Nutrition, da Cambridge University, Gabriela Lopes da Cruz identificou associação positiva entre o consumo de carne bovina e alimentos ultraprocessados com a pegada de carbono e a pegada hídrica no Brasil.

As experiências com células estaminais embrionárias humanas têm sido questionadas sob aspectos éticos e políticos, e atualmente esse tipo de investigação tem sido objeto de políticas restritivas nos EUA. A discussão pública é frequentemente contaminada por poderosos interesses; afinal, quem deve determinar o que pode e o que deve ser feito e de acordo com quais critérios?

O Fórum de Infraestruturas da OCDE deste ano centra-se na construção de infraestruturas resilientes que se refletem na segurança pública, na estabilidade econômica, no meio ambiente e na saúde pública, proporcionando informações sobre estratégias que transcendam as fronteiras tradicionais e integrem a resiliência ao longo de todo o ciclo de vida das infraestruturas.

É necessário atentar para a “complexidade e a multi-institucionalidade dos desafios que o desenvolvimento tecnológico apresenta; as soluções devem começar com os modelos certos para uma transformação institucional profunda”, afirmam Hughes e D. E. Winickoff, um novo modelo de mudança tecnológica, uma reconceptualização do papel da tecnologia na sociedade.

De acordo com a Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação, até 40% das terras do planeta estão degradadas, afetando metade da população mundial e ameaçando cerca de metade do PIB global. O número e a duração das secas aumentaram 29% desde 2000 – sem uma ação urgente, as secas podem afetar mais de três quartos da população mundial até 2050.

Ao invés de tentar apaziguar eleitores, acionistas e políticos com a abordagem menos disruptiva possível, faz-se necessária uma mudança sistêmica genuína. Degradação ambiental e emissões de carbono continuarão a piorar enquanto não forem abolidas as políticas que, entre outras coisas, incentivam o investimento nos combustíveis fósseis e eliminam os subsídios globais a elas destinados.

Os cientistas e os conselheiros científicos devem comparecer ao lado dos políticos para debater com eles nas instâncias e meios públicos de comunicação (radiodifusão, televisão e imprensa) e expressar livremente as suas opiniões sobre questões atuais, especialmente quando contaminadas por interesses políticos e econômicos dominantes em contradição com as provas científicas.

“Devem as universidades manter-se neutras e abster-se de tomar posição sobre as questões que se colocam às sociedades que devem servir, ou têm o dever de defender valores fundamentais como a inclusão social, a verdade científica, os valores éticos, a investigação responsável e a solidariedade global?” (University World News: By imposing silence, universities betray their mission).
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