Respostas e esclarecimentos às críticas de leitores sobre a carta aberta para o Ministro da Educação

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 07/07/2023 - Publicado há 10 meses

Receber críticas, depois de publicar uma carta aberta, é animador.

1. Os críticos mais delicados deram um toque.

Afinal, você está a favor ou contra da participação de instituições privadas na rede escolar pública?

Depende da natureza da parceria, estabelecida com a Secretaria de Educação de cada Estado.

Dou um exemplo. Um “grupo de pessoas” bem-intencionado resolveu oferecer aulas de apoio para estudantes de uma escola pública, com dificuldades em algumas disciplinas. O grupo começou a dar aulas no sábado. Gente generosa ajudando o próximo.

Deu certo?

Não.

Por quê?

Porque a diferença entre os professores do sábado e os professores da escola pública era grande. O grupo dos generosos, bem-preparados, desestabilizou a relação dos alunos com os professores da rede, com outro tipo de formação. A história é cheia de detalhes desde horários do uso da escola, chaves das salas, remuneração entre outras miudezas do cotidiano escolar.

Parcerias entre a rede estadual de educação e instituições privadas dependem de um planejamento elaborado pelo poder público. Planejada e institucionalizada a generosidade pode dar certo.

2. Os críticos mais ferozes atacaram a partir do território, do “lugar de fala”: da USP ou da escola pública.

O argumento foi o seguinte: professor da USP não conhece o chão da escola de Ensino Médio. Para eles, a docência universitária está distante dos desafios das salas de aula.

Existe diferença?

Sim, existe. Diferença no número de horas aula, na manutenção da disciplina dos jovens e na formação anterior dos estudantes. Na universidade, os alunos são selecionados pelo vestibular. No Ensino Médio a escola é para todos.

Atualmente, as semelhanças aumentaram e as diferenças diminuíram. As políticas de cotas alteraram o perfil dos alunos nas universidades pública, favorecendo o acesso para os mais diversos segmentos da sociedade.

De qualquer maneira, antes de interditar o diálogo, convém lembrar a história da USP. A Universidade de São Paulo foi uma das poucas instituições brasileiras responsáveis por mobilidade social. Vários renomados pesquisadores, formados na USP, estudaram em escolas públicas. O acesso ao conhecimento, por meio de uma universidade pública, permitiu transformações em suas vidas e de suas famílias. Foram poucos, é verdade. Mas, por muito tempo representou a única porta aberta para a ascensão social.

3. Os críticos envolvidos com detalhes mais específicos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) pediram esclarecimentos sobre minha posição em relação à plataformização embutida na BNCC.

Ótimo questionamento. Este é o cerne da questão.

O maior problema gerado direta ou indiretamente pela BNCC diz respeito aos perigos da plataformização do ensino.

O tema foi bastante discutido por educadores, com destaque para às instituições privadas envolvidas com o empreendimento: a construção das plataformas educacionais.

Do ponto de vista pedagógico, conforme expliquei na carta para o Ministro da Educação sou a favor de bibliotecas nas escolas, ainda que pequenas. Um espaço onde professores e alunos possam manipular diferentes livros didáticos, alguns paradidáticos e, mediante o uso das redes, ter acesso a várias plataformas e outros materiais disponíveis na rede. Visitas virtuais a museus podem estimular discussões em sala de aula.

As plataformas devem ser utilizadas da mesma maneira que consultamos livros nas bibliotecas. A plataforma X pode complementar uma aula de geometria, a plataforma Y oferecer uma análise de uma obra literária e outra, ainda, a plataforma Z, o trajeto de viagem realizado por viajantes do século 19, material complementar para uma aula de geografia ou para os itinerários formativos, na área de ciências da natureza. Trata-se de material de consulta e estudo para o uso do professor e do aluno.

O maestro da orquestra é o professor.

As universidades poderiam participar da construção destas bibliotecas sem custo para a rede pública. Isto já acontece, mas, por falta de institucionalização das relações entre as secretarias e a universidade, o material disponível gratuitamente é pouco utilizado. Como exemplo basta entrar no site da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da USP. Qualquer escola pode ter acesso, grátis, a excelentes materiais didáticos para uso em sala de aula. Faltam leitores. Falta parceria com a rede pública. Um mistério o desinteresse das escolas públicas.

Então qual é o problema com a plataformização?

A transformação do professor em escravo da plataforma sem direito à livre condução da sua aula. O professor é apenas um indutor das leituras contidas nas plataformas, um ajudante na execução dos exercícios propostos pelas plataformas. Ele não “fala”. Quem manda é a plataforma.

A plataforma educa, torna o jovem mais aptos para viver em sociedade?

Não.

A plataforma pode ensinar cálculos complexos ou explicar como fazer uma redação para ser aprovado no vestibular. Por exemplo: Elabore uma hipótese. Em seguida desenvolva argumentos. Dê preferência para três. Um, dois, três argumentos. Conclua levando em conta os três argumentos citados. Aprendeu a lógica? Entrou na caixinha? Vai ter boa nota de redação.

Aparentemente tudo certo. Mas, o jovem, sem saber, abriu mão do essencial. Não exercitou a liberdade de pensamento, o exercício da vontade, o livre-arbítrio. Não aprendeu a viver.

Arrisco uma hipótese.

A educação tem como objetivo, além do conhecimento, o exercício da liberdade, do livre-arbítrio e do controle da vontade. Pode parecer conversa antiga. Mas, o problema é atual. O jovem que mata seu colega não exercitou a sua liberdade de pensamento, teve vontade e simplesmente cumpriu seu instinto violento, matou. Não experimentou o domínio da sua vontade, não praticou o exercício do livre-arbítrio, apenas pôs em pratica o seu desejo, a raiva, o ódio e a violência, fruto de suas experiências de vida, impulsionado pelas redes.

Qual a relação desta temática, plataformização, com a discussão proposta por Hannah Arendt, a partir do julgamento de Karl Adolf Eichmann?

A plataformização desmobiliza o professor de seu papel de indutor de perguntas geradas em circunstância. O acidental pode estimular, com a ajuda do professor, uma reflexão (dialética) do professor, do aluno e da classe. O acontecimento incomum é aquele que estimula a prática do livre-arbítrio. Trata-se de um exercício de indagação sobre si mesmo. Dúvidas sobre os atos praticados, exercício de elaboração, por meio do juízo e da razão, da responsabilidade pelos atos praticados. Esta prática cotidiana educa.

Quem pode estimulá-la?

O professor.

A plataforma é muda diante de uma circunstância excepcional.

Ouvir um comentário inesperado de um aluno sobre um tema, a partir de um acontecimento acidental, ressignificar uma metáfora divertida, pronunciada repentinamente por um estudante, ou discutir o bullying em contexto, a dor da vítima e o prazer do algoz, faz parte do exercício do livre-arbítrio.

Não existe aula de ética. A ética o professor faz brotar em circunstância, diante do inesperado. Pouco adianta sugerir para um estudante ser bom, ser justo, ser prudente entre outras tantas virtudes. A virtude se desperta no ato, em meio a erros e acertos, exercitando o domínio da vontade, em casa, na escola e na cidade (polis), na vida política.

Como observou Hannah Arendt, Karl Adolf Eichmann foi um aluno razoável, tocava violino e foi resiliente e organizado (comandava o transporte ferroviário) no exercício de sua função, conduzindo os judeus para serem executados. Cumpria ordens.

As redes sociais induzem a obediência dentro de suas bolhas. É o trem. A tarefa da escola é despertar a reflexão sobre a condição humana, viajando junto aluno e professor, nas diversas bolhas e plataformas.

É educador o professor de carne e osso. Professor consciente de seu livre-arbítrio, próximo corporalmente dos estudantes e com autoridade em sala de aula.

Se não ficou claro na carta para o ministro e para os leitores explicito:

Sou contra o uso da plataformização nas escolas brasileiras pelos motivos descritos neste artigo.

Em cada sepultamento de um perguntador, seja ele professor ou aluno, em cada silenciamento pela plataforma, da dúvida ocasional, em cada funeral de experiências circunstanciadas, inesperadas, singulares, atípicas em sala de aula, morre junto uma porção da razão e, com ela, a democracia.

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