Carta aberta ao ministro da Educação. Assunto: O ensino médio e a universidade

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 26/06/2023 - Publicado há 11 meses

Exmo. Senhor Ministro da Educação Camilo Santana,

Tenho acompanhado os dilemas da educação brasileira desde a década de 1980. Sua escolha como ministro fez a esperança brotar. O ensino médio, no Ceará, saltou do 12º lugar, em 2015, para a quarta posição, em 2019. Parabéns.

Se o mundo fosse outro, eu convidaria Vossa Excelência para um almoço. Uma prosa sobre os feitos cearenses na área da Educação, sobre o novo ensino médio e a sua implantação na floresta, no cerrado e na caatinga.

Por hábito de profissão e apego ao passado (sou historiadora) optei por escrever uma carta pessoal, refletindo sobre o tema. O foco central da missiva é a implantação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) nos diversos municípios brasileiros, e as relações entre a BNCC, o Enem e a Universidade.

Depois de 30 anos como professora na Universidade de São Paulo, agora aposentada, gostaria de contribuir para a manutenção das portas da Universidade abertas para os estudantes do ensino médio que pretenderem continuar os estudos.

Como a reestruturação do ensino médio está na pauta, e aberta uma consulta pública, envio respeitosamente para Vossa Excelência minhas considerações e sugestões.

A reforma do ensino médio deve parar, continuar ou prosseguir em etapas?

Reformar o ensino médio é um dos grandes desafios enfrentados pela educação brasileira na atualidade. Para discutir o assunto é necessário saber em que pé estamos.

Em 2019, 7% da população brasileira entre 15 e 17 anos estava fora da escola. A taxa de abandono da rede pública no ensino médio era de 7,5% e, no curso noturno, alcançava taxas mais altas, 14% (de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios/Pnad).

Em 2021, segundo os dados do IBGE, os principais motivos alegados para a evasão eram: a necessidade de trabalhar, o desinteresse pelo curso e a gravidez.

Evolução da taxa de abandono do ensino médio por Estado – Fonte: Censo Escolar (Inep) / Fundação Roberto Marinho
Fonte: Pnad Contínua Educação 2019 – Agência IBGE Notícias

Entre os especialistas existe acordo sobre a necessidade de mudança.

A sintonia, tornar o ensino médio mais atraente, adequado às novas tecnologias, capaz de valorizar situações-problema cotidianas e de promover o aprendizado sobre linguagens e letramentos: digitais, visuais, sonoros, corporais, matemáticos, escritos, artísticos, entre outros.

O desacordo surge, na maior parte das vezes, quando se tenta colocar em prática a mudança em todo o território brasileiro. Alguns municípios não dispõem de recursos materiais para a sua implantação, nem professores formados de acordo com as demandas da BNCC. O problema mais grave é a diminuição da carga horária disciplinar em favor dos Itinerários Formativos. Esta alteração prejudica os estudantes que pretendem continuar os estudos, disputando uma vaga por meio do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e dos vestibulares das universidades.

O tamanho do Brasil e seus municípios

Pensar o ensino médio é também pensar o Brasil. É difícil o ensino médio proporcionar formação equivalente entre os estudantes residentes nos 5.568 municípios brasileiros. Em muitas localidades não existem escolas de ensino médio, os estudantes precisam se deslocar enfrentando longas distâncias para continuar seus estudos. Sem mobilidade, muitos jovens são levados a abandonar a escola.

O nosso território é imenso (8.514.876 km2) e os recursos escassos, tornando difícil equipar as escolas de maneira similar. As diferenças dos municípios exigem mapear detalhadamente os recursos físicos/logísticos, humanos e tecnológicos antes de implementar as mudanças. Frente os desequilíbrios políticos e econômicos, o dilema é definir as prioridades, município por município, Estado por Estado, em um projeto de âmbito nacional. Não é fácil. Os dados sobre escolas, alunos, matrículas, professores, instalações e muitos outros estão disponíveis na rede. Falta a costura entre os interesses políticos, econômicos e educacionais.

O que deve ser avaliado para a implementação da BNCC:

1. A escolas instaladas em diferentes municípios dispõem de energia elétrica, computadores, com acesso para professores e alunos e, principalmente, serviço de manutenção da rede?
2. Os professores estão preparados e dispõem de tempo em sala de aula e formação para ensinar os conteúdos básicos e compor, junto com seus colegas, os Itinerários Formativos com vocação interdisciplinar?
3. Existem políticas públicas institucionalizadas compatibilizando o conhecimento praticado nas escolas da rede pública com as instituições responsáveis pelos vestibulares das universidades públicas?

Embora muitos alunos do ensino médio não pretendam continuar seus estudos em universidades, a oportunidade deve ser oferecida para todos. A preparação para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e para o vestibular exige a definição de conteúdo básico ajustado às disciplinas e aos Itinerários Formativos.

Sem pactuar conteúdos e graduar a sua complexidade, não é possível avaliar de forma igualitária.

O primeiro indicador para a avaliação do novo ensino médio no Brasil

O tempo nas escolas e a BNCC

Uma pergunta simples: os estudantes, nos diversos municípios brasileiros, permanecem na escola o tempo suficiente para a sua formação? A implantação do período integral nas escolas não deveria preceder a implantação da BNCC nas escolas?

Grande parte dos municípios brasileiros só possui escolas de tempo parcial. Neste caso, os Itinerários Formativos, como fazer um vídeo, produzir um jornal ou inventar um robô, tendem a ocupar grande parte do tempo.

O tempo na tela do celular passa rápido. Ele captura a vida sensorial do estudante, domina o olhar e amortece a razão. Já o exercício da razão corresponde a um tempo moroso, exige esforço para abstrair. Os jovens geralmente nomeiam o tempo necessário para a abstração como tedioso.

Ocupar o tempo com novas tecnologias ou mesmo com o excesso de trabalho pode distrair, ensinar as pessoas a ter prazer em se livrar das reflexões mais profundas. Pensar cansa. Mesmo decorar números de telefone aborrece. É mais fácil olhar no celular do que enfrentar uma aula de disciplinas como matemática, filosofia ou português.

Um exemplo

As fake news são resultado de tecnologia, interesses pessoais exacerbados e desintegração da vida política. Compare como é rápido e indolor aceitar uma solução miraculosa, do tipo cloroquina cura covid, com a produção de métodos científicos voltados para a comprovação de uma hipótese, por exemplo, a eficiência de uma vacina.

Escolher entre uma coisa e outra consome energia do tipo humano, cerebral. Crer é mais fácil.

O “fazer” pressupõe o lúdico, a brincadeira. O tempo passa depressa em atividades ligadas ao cotidiano, a vida prática e a resolução de problemas por meio de novas tecnologias. Elas enfeitiçam da mesma maneira que o celular seduz na mão dos jovens. Se um ladrão rouba um celular, a vítima fica sem chão, sem lembrar de um só número telefônico para pedir ajuda.

Onde está a vida? No celular.

Desvendar os mistérios da razão, da felicidade e da política exige tempo para filosofar. Compreender o sentido da terra, da água, da vida no planeta requer distanciamento da própria cultura. Tempo para descobrir a si mesmo e ver o Outro. Tarefa difícil.

As práticas ligadas à tecnologia se tornaram senhoras do tempo. O humano perdeu o domínio do tempo. O professor precisa de tempo para questionar o uso do tempo. Uma parte do tempo para cursos disciplinares e outra parte do tempo voltada para “o fazer”, para os protagonismos prazerosos dos estudantes.

Solução sugerida: tempo integral na escola para a aplicação da BNCC, sem abrir mão das práticas disciplinares.

O gráfico abaixo é esclarecedor.

Fonte: Inep / Censo Escolar 2022

Merece atenção o número de alunos em tempo integral em cada Estado da federação. Parabéns para os Estados de Pernambuco, Paraíba e Ceará. Quem diria…

Segundo indicador para a avaliação do novo ensino médio no Brasil

A tecnologia nas escolas e a BNCC

O uso da palavra tecnologia em todas as áreas do saber na BNCC expressa a vontade de mudança do novo ensino médio, em resposta aos desafios contemporâneos. Em tempo de inteligência artificial é razoável dar prioridade à tecnologia.

As três grandes áreas de conhecimento, na BNCC, valorizam o aprendizado por meio das habilidades e competências vinculando-as à tecnologia, palavra presente em cada uma das áreas na BNCC.

As áreas propostas são: Linguagens e suas tecnologias; Matemática e suas tecnologias; e Ciências da Natureza e suas tecnologias.

Antes de analisar questões mais complexas convém lembrar a relação estreita entre energia elétrica e a tomada do dispositivo indispensável para conectar equipamento elétrico.

Pergunta indispensável: Qual a situação das escolas nos diferentes municípios brasileiros com relação à rede de energia elétrica? Como implantar a BNCC, com foco nas novas tecnologias, em municípios sem energia elétrica e sem computadores com acesso à rede?

Detalhe: Não se deve esquecer, nas escolas conectadas à rede elétrica, a conservação dos computadores. Verifica-se, com certa frequência, pane na rede e o “salvador da pátria” é o técnico de manutenção. Existe este cargo ou função nas escolas para este profissional? É possível, sem ele, fazer a manutenção dos computadores para mantê-los em funcionamento?

O Brasil tem dificuldade em proteger, conservar e consertar objetos quebrados e seu patrimônio histórico.

A grande habilidade dos brasileiros é comprar sem discutir o preço.

De acordo com o Painel Conectividade, nas escolas a situação é a seguinte:

“No final de 2022, 3,4 mil escolas no País (2,5%) não tinham acesso a rede de energia elétrica, 9,5 mil (6,8%) não dispunham de acesso à internet e 46,1 mil (33,2%) não possuíam laboratórios de informática. Os números foram disponibilizados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) no Painel Conectividade nas Escolas, disponível no Portal da Agência.

Sem energia elétrica, quatro Estados tinham mais de 10% das escolas: Acre (35,3%), Roraima (21,5%), Amazonas (19,9%) e Pará (12,2%). No entanto, 11 das 27 unidades da Federação registram 100% das escolas com acesso à eletricidade.

Seis Estados brasileiros têm mais de 10% das escolas sem acesso à internet: Acre (46,0%), Amazonas (40,9%), Roraima (36,1%), Pará (27,9%), Amapá (27,5%) e Maranhão (11,9%).

As unidades da Federação com o maior porcentual de escolas conectadas são Mato Grosso do Sul (100%), Goiás (99,9%) e Distrito Federal (99,9%). No Estado do Acre, 90,9% das escolas não possuem laboratório de informática. Maranhão (89,6%) e Pará (86,1%) são o segundo e terceiro com o maior porcentual de escolas sem laboratório no País” (Anatel).

Para os defensores da BNCC o ensino médio deve preparar os jovens para o mundo do trabalho onde a tecnologia é essencial. Argumento perigoso se não existirem professores capazes de ensinar as vantagens e desvantagens envolvidas no seu uso.

O mundo real e o mundo virtual

Como diz Lucia Santaella, a inteligência artificial está colocando em questão a ontologia do ser humano. Está deixando de lado o próprio ser humano.

A realidade virtual, na forma como é vendida, parece um brinquedo para criança. Faz ver dinossauros, elimina inimigos virtuais em jogos digitais e manipula emocionalmente as pessoas. Vai além.

A tecnologia aparentemente age a despeito do seu senhor e procria no ritmo de 1000 Mbps, ou mais, em um território sem lei. Pode apagar os humanos todos, sejam eles índios, senhores, escravos, operários e até magnatas antinazistas substituindo seres humanos reais por qualquer outra coisa agradavelmente virtual. A tecnologia e o uso das redes sociais já demonstraram o seu poder ao diluir a razão, “provando” que a terra é plana, negando as vantagens da vacina, relativizando o significado da vida, dando tempo para a morte agir.

Expor argumentos racionais, incentivar a prudência e ser amável, atualmente, despertam tédio.

Por quê?

Pensar exige esforço. Pensar dá preguiça e não agrega seguidores nas redes sociais.

O desenvolvimento da tecnologia tem relação com a guerra. Os militares possuem boa formação na área tecnológica, atentos aos usos da tecnologia tanto para a defesa como para ataque. As armas podem proteger ou atacar a soberania nacional ou os interesses de grupos encastelados no poder de Estados ou de proprietários das redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram…). A tecnologia é arma eficiente de combate, e pode ser utilizada para diversão, venda ou para a educação. A tecnologia também serve para a agricultura, medir áreas desmatadas, roubos eletrônicos, produzir fake news e serve também para solapar a democracia.

Embora num primeiro momento possa parecer tedioso aprender matemática voltada para a engenharia da computação ou discutir filosoficamente o significado da cibercultura, a escola não pode abrir mão de discutir a engenharia de software, a arquitetura da informação e a sua construção para reproduzir um replicante do ser humano. O filme Blade Runner 2049 é sugestivo, e a música, excepcional.

Vossa Excelência sabe a importância da razão crítica. Ela é o único medicamento que temos em mãos para salvar o planeta. O assassinato da razão pode ser executado por um singelo aplicativo. Basta um toque.

Terceiro indicador para a avaliação do novo ensino médio no Brasil

O dilema das escolas de pequeno porte

As escolas de pequeno porte dispõem de condições para oferecer diferentes Itinerários Formativos.

No Brasil, em 2022, o ensino médio é ofertado por um total de 29.413 escolas distribuídas em diferentes municípios. São escolas de pequeno porte, aquelas com até 50 matrículas no ensino médio.

Elas correspondem a 35,4% na região Norte e 22,7% na região Nordeste. Os Estados com maior porcentual destas pequenas escolas são o Acre com 46,7% e Roraima com 41,8%. As pequenas escolas não têm condição de oferecer vários Itinerários Formativos conforme as diferentes áreas propostas pela BNCC. Seria necessário um grande número de professores e salas de aula para cobrir adequadamente os três Itinerários Formativos.

Fonte: Elaborada pela Deed/Inep com base nos dados do Censo Escolar da Educação Básica.

Existem recursos materiais e humanos para uma implantação igualitária da BNCC, no Brasil?

O desafio, em relação à disponibilidade de professores, pode ser descrito assim:

Todas as escolas terão condições de oferecer a mesma quantidade de horas-aulas em todos os três itinerários (Linguagens, Matemática e Ciências da Natureza). O número de professores é suficiente para a oferta de diferentes Itinerários Formativos nas escolas de pequeno porte?

Caso a resposta seja não, a prudência sugere ritmo lento para a implantação.

Quarto indicador para a avaliação do novo ensino médio no Brasil

A idade dos professores e as novas tecnologias

A implantação da BNCC exige formação adequada dos professores. Migrar do ensino disciplinar para uma formação por meio de habilidades e competências, com foco em situações-problema, exige formação disciplinar, interdisciplinar e utilização crítica das novas tecnologias.

Explico.

O total de professores no ensino médio, em 2020, é de 505.782. A tabela abaixo informa a idade dos professores da rede pública, formados em disciplinas específicas. A maior parte deles está na faixa etária de 40 a 60 anos, nasceram entre 1960 e 1980. Não foram alfabetizados digitalmente quando crianças.

Fonte: Resumo técnico do Censo Escolar 2022

A tecnologia, forte componente da BNCC, pretende inserir os jovens na engenharia e prática computacional, na linguagem utilizada nesta área do saber. Para além dela é necessário, ao mesmo tempo, demonstrar a manipulação da lógica afetiva, de cada um dos usuários, pela rede. São necessários os dois tipos de aprendizados para manter a capacidade crítica.

Exemplo:

Ao inventar um botão “curtir”, a linguagem digital expõe afetivamente o estudante, usuário das mídias sociais, à imposição de um outro “ser” invisível, meio gente, meio algoritmo, com atribuição de qualificá-lo positivamente ou negativamente. A utilização indiscriminada pelas mídias de uma lógica afetiva permite a manipulação, às vezes criminosa, dos jovens nas redes, deixando para segundo plano o fatigante uso da razão.

Os professores estão preparados para manipular criticamente o uso da linguagem digital nas diferentes áreas? Receberam preparo para enfrentar este desafio (o celular) em sala de aula? Dispõem de formação para explicar a manipulação emocional feita pelo algoritmo?

Quinto indicador para a avaliação do novo ensino médio no Brasil

A formação dos professores

Para complicar, além da energia elétrica, da idade dos professores com menor familiaridade com a linguagem digital, o professor-herói, de acordo com a BNCC, é estimulado a navegar em diferentes disciplinas.

Deixar o campo disciplinar para atuar no campo interdisciplinar exige alteração de método de trabalho, incorporação dos conceitos básicos de outras disciplinas e familiaridade com temas e atividades com base nas novas tecnologias.

A junção entre diferentes áreas de conhecimento demanda do professor penetrar na raiz de conceitos de outras disciplinas. É difícil. A conjugação de disciplinas exige mais tempo na escola (período integral), estrutura (laboratórios) e a incorporação de novos saberes frutos da linguagem digital.

O Estado brasileiro dispõe de condições materiais e humanas para disponibilizar professores em todo o território nacional, com tempo nas atividades e formação adequada para a implantação da BNCC?

Não seria mais prudente priorizar as mudanças mapeando as necessidades regionais e municipais, adaptando paulatinamente o projeto às diversas realidades brasileiras?

Breve esclarecimento sobre temáticas interdisciplinares. Um exemplo:

Vários interlocutores, em meio a debates, frequentemente solicitam exemplos para compreender o desafio.

As habilidades sugeridas em sala de aula seriam comparar, descrever e analisar.

Tentem comparar os diários de viagem de Mário de Andrade e os diários/relatórios de viagem de Oswaldo Cruz. Ambos percorreram longos itinerários na Amazônia e em outras regiões brasileiras, no início do século 20. A comparação dos documentos permite uma viagem do leitor, docente ou estudante, nas disciplinas de literatura e de ciências da natureza.

O gênero textual, diário, cartas ou relatório científico, influi na forma de ver ou deixar de ver e qualificar positiva ou negativamente a floresta e sua população. O seringueiro é preguiçoso? Prevalecem hábitos das populações originárias ou não? Onde está posta a beleza deste lugar e de suas gentes? A resposta pode ter origem em Macunaíma ou em políticas higienistas. Cada um narra o que vê de uma forma específica. Convenções de linguagem voltadas para a ficcionalidade ou veracidade podem explicar as diferenças. O compromisso de Mário de Andrade era com a ficção e o de Oswaldo Cruz com a verdade. Questões de linguagem e método científico são pautas sugestivas para a discussão em sala de aula.

Fazer um inventário das semelhanças e diferenças depende de uma base disciplinar nas duas áreas, linguagens e ciências da natureza. O desafio é grande.

Os professores brasileiros tiveram acesso a este tipo de formação?

Sexto indicador para a avaliação do novo ensino médio no Brasil

Quanto ao material didático, apostilas e biblioteca

A realização desta nova proposta educacional contida na BNCC exige formação de professores para um aprendizado crítico. Exige bibliotecas medias, pequenas ou pequeníssimas. Reunir alguns livros didáticos de diversos autores, revistas ou jornais e os romances mais utilizados nos vestibulares. O importante é despertar o estudante para as diferenças entre um autor e outro.

Aqui cabe uma observação: o pensamento único nasce e se fortalece com a utilização de um só livro didático e a imposição de sua aplicação. O mesmo se aplica aos cursos apostilados onde o professor é escravo do material didático sem espaço e tempo para refletir com os alunos questões surgidas em sala de aula ou no dia a dia da comunidade.

“Viagens pela internet” se bem administradas pelo professor, podem ser estimulantes e repletas de novos conteúdos e ideias. Mostrar a diversidade presente no mundo é um caminho para romper o pensamento único. Sem esquecer o fato de, em muitas escolas, serem poucos os computadores com possibilidade de utilização pelos estudantes, priorizando os diretores e os professores.

“A disponibilidade de recursos tecnológicos nas escolas de ensino médio é maior do que nas de ensino fundamental. Quando observada a rede estadual, que detém o maior número de escolas de ensino médio, nota-se que 80,4% das unidades têm internet banda larga. Nessa rede, o percentual de computadores de mesa para alunos é de 79,3%, porém o de computadores portáteis para alunos é de apenas 36,3%. Já a rede privada de ensino oferece esse equipamento aos alunos em 53,5% das escolas. Da mesma forma, a rede privada possui um porcentual maior de tablet para alunos (31,8%), enquanto 13,1% das escolas estaduais oferecem o mesmo recurso” (Censo Escolar 2020).

A jabuticaba brasileira, os cursos apostilados, são uma camisa de força para o professor. Trata-se de um modelo onde o professor é aprisionado em uma caixinha onde o tempo é cronometrado. Tempo de exposição do conteúdo, tempo dos exercícios, tempo da leitura do box, em geral uma citação ou imagem pintada de outra cor na apostila, conforme escolha do autor da apostila e não do professor.

O pensamento único ditado pelo livro didático é similar ao pensamento único ditado pelo celular, ou ao pensamento único controlado pelo estado autoritário e ditatorial. Nos três casos falta liberdade, falta uma busca ativa pelo conhecimento e reflexão crítica diante da informação manuseada com criatividade pelo professor e pelo aluno.

Ausência de variações bibliográficas, de estilos de vida e de tradições resulta em um doce veneno: o autoritarismo.

Vossa Excelência tem a dimensão do perigo. 27% da população brasileira é insensível ao pensamento demonstrativo, portanto, à universidade.

Sétimo indicador para a avaliação do novo ensino médio no Brasil

Automutilação e suicídio. A invisibilidade da vida e a visibilidade da tecnologia

Matéria para ser enfrentada por filósofos, médicos e terapeutas.

O ensino médio nos dias de hoje enfrenta um novo e imenso desafio: a automutilação e o suicídio entre os jovens. As habilidades socioemocionais, a falta de autocontrole, de determinação ou mesmo resiliência, entre outras tantas questões comportamentais, deixam de lado as raízes do sofrimento psíquico.

O sofrimento psíquico invade as escolas nos dias de hoje.

As origens do problema dos jovens misturam ausência de horizonte promissor, manipulação da vida emocional pela tecnologia e excesso de demandas familiares e profissionais.

A gravidade do problema, especialmente depois da epidemia de covid, sugere a institucionalização de políticas que aproximem a rede escolar do Sistema Único de Saúde, o SUS.

Suicídio

O suicídio entre os jovens tem crescido assustadoramente. Para frequentar a escola é necessário estar vivo e sem machucados, cortes nos braços e nas pernas, em razão da automutilação.

As cobranças dos pais e da escola por um melhor desempenho, o tédio, a baixa autoestima, o bullying e a relação com o corpo/imagem manipulados pelas redes sociais representam um enorme desafio para o jovem, para a escola e para o professor.

Poucos pais ou professores dispõem de condições emocionais e materiais para responder aos desajustes criados ou encorajados pelas redes sociais. Poucos são capazes de driblar as frustrações expressa no botão “curtir”. Lógica de efeitos perversos.

Cobrar do professor a resolução dos problemas emocionais é inapropriado do ponto de vista profissional. Os docentes também enfrentam dificuldades em casa, com os seus próprios filhos, sem estrutura psicológica e financeira para enfrentar as demandas da geração Y e Z, jovens nascidos a partir de 1981. Alunos exigentes, às vezes violentos, incapazes de conviver com as frustrações cotidianas e prisioneiros das mídias sociais.

A cobrança não deve ser feita para o professor. Ele não é formado em psiquiatria ou em psicologia. Os processos de tomada de consciência de si mesmo, das próprias fragilidades e a capacidade de auto-observação, visando mudança de conduta, ultrapassam o ambiente da escola ou das competências socioemocionais. Muitos jovens precisam de tratamento medicamentoso capaz de interferir positivamente em problemas como a falta de foco, de adaptação a situações novas e a dificuldade para dormir.

Do ponto de vista da prática escolar os estudantes necessitam discutir o sentimento de desesperança. Carecem de um professor filósofo. Na filosofia, Aristóteles por exemplo, trata da felicidade por meio de conceitos como virtude, amizade e razão. Este campo de reflexão na escola, sem parentesco com as competências socioemocionais, pode ajudar os jovens a compreender o mundo em que vivem. Reflexão de raiz onde há espaço para lidar com o profundo desencantamento frente ao mundo em que se vive. Sem esperanças e sem utopias.

O jovem é inquieto, rebelde e muitas vezes chato, “aborrecente”. Ele, na juventude, coloca o mundo em questão: pai, mãe, família, religião, trabalho, estudo, tudo. Educar não é adaptar o jovem a circunstâncias. Educar é aprimorar o espaço da dúvida, refletir sobre a razão das coisas, descobrir a importância da pólis para viver melhor.

Os processos de adaptação são adequados ao mundo do trabalho. Quando se tem família para sustentar o desafio é aprender a conviver com o outro. Na maturidade o mistério a ser desvendado é como conviver com o chefe autoritário, com a promoção injusta, com a distribuição desigual do trabalho e salário. Ficar em silencio exige técnica para não perder o emprego e não “sair da caixinha”. Neste espaço faz sentido aplicar as dinâmicas de grupo onde o foco é o desenvolvimento das habilidades socioemocionais como cooperação, liderança e resiliência.

Na escola o desafio é outro: a razão crítica.

Aristóteles sugere: a melhor maneira de educar envolve a discussão sobre virtudes. É fácil compreender o pressuposto aristotélico. Afinal o que difere as habilidades tecnológicas de um ladrão especialista em roubos bancários daquelas desempenhadas por um médico na sala de cirurgia, manipulando alta tecnologia para salvar vidas? O uso da razão, da inteligência, virtudes em Aristóteles, instrumento de medida para separar o ladrão do médico.

Aristóteles não estaria certo?

Os jovens vivem uma crise existencial profunda cujos resultados muitas vezes desembocam na automutilação e no suicídio. Os dados são preocupantes. A curva é ascendente.

“As análises sobre a evolução das taxas de suicídio entre 2010 e 2019 demonstram aumento do suicídio em todos os grupos etários. Mas o maior aumento ocorreu entre adolescentes, 81%, passando de 606 óbitos, uma taxa de 3,5 mortes por 100 mil habitantes, para 1.022 óbitos, uma taxa de 6,4 suicídios para cada 100 mil habitantes. Houve aumento significativo entre menores de 14 anos. Entre 2010 e 2013, nesta faixa etária, houve um aumento de 113% na taxa de mortalidade por suicídio, uma taxa de 0,3 por 100 mil habitantes, para 191 óbitos, uma taxa de 0,7 por 100 mil habitantes” (Boletim Epidemiológico 33 – Ministério da Saúde).

Fonte: www.icict.fiocruz.br

A renda familiar é uma das variáveis frequentemente analisadas. Observando os Estados e as cidades, onde ocorrem o maior número de suicídios, algumas hipóteses podem ser levantadas.

Interferem na decisão pelo suicídio as tradições culturais na forma de enfrentar a dor psíquica e privações materiais, dificuldade em lidar com as dívidas e isolamento social. Dados obtidos entre a população branca.

Do ponto de vista proporcional, o maior índice de suicídio no Brasil é entre os indígenas: 74%.

As razões têm origem na maneira como cada uma das tradições dos povos originários maneja a violência gerada pelo contato com sociedades não indígenas.

Perigo à vista: os povos originários e o ensino médio

O ensino médio, caso pretenda melhorar as condições educacionais em todo o Brasil, não pode deixar de lado os desafios enfrentados pelos povos originários, fortalecendo os vínculos entre as escolas voltadas para esta população com políticas do Sistema Único de Saúde/SUS.

Taxas de mortalidade por suicídio, ajustadas por idade, segundo UF. Brasil, 2019

“… no Estado do Amazonas, verificou-se uma taxa de mortalidade por suicídio em indígenas (18,4 por 100 mil) sendo 4,4 vezes superior à população não indígena (4,2 por 100 mil). Além disso, enquanto entre indígenas o maior risco foi observado entre jovens de 15 a 24 anos, entre os não indígenas o maior risco foi verificado entre idosos. Outra análise em nível nacional demonstrou uma taxa média de suicídio entre indígenas, no período de 2015 a 2018, de 17,5 por 100 mil indígenas, sendo 2,9 vezes superior à taxa entre brancos, e 3,1 vezes superior à taxa entre negros, e com maior risco de morte na faixa de 15 a 19 anos de idade” (Boletim Epidemiológico 33, Ministério da Saúde).

O novo ensino médio no Brasil deve, antes de mais nada, priorizar boa alimentação e saúde física e mental, um “combo” em favor da vida humana.

O vínculo entre as Secretarias de Educação e o Sistema Único de Saúde/SUS se apresenta, hoje, como indispensável. A ministra Nísia Trindade Lima entende do problema e tem coração grande.

Vossa Excelência compreende a zona de perigo dos jovens no ensino médio.

A questão é de vida ou morte.

Oitavo indicador para a avaliação do novo ensino médio no Brasil

Como superar a distorção idade-série mantendo o sonho de acesso à universidade para todos

As distorções em termos de idade-série são enormes no Brasil. Elas assinalam os jovens com chance ou não de caminhar em direção à universidade.

É possível atenuar as diferenças entre os estudantes das diversas regiões do País?

“O ensino médio é a etapa da educação básica em que há o maior percentual de estudantes com dois ou mais anos de atraso escolar. São mais de 2,2 milhões de meninos e meninas em situação de distorção idade-série, o que corresponde a 28% dos estudantes matriculados nessa etapa de ensino. A distorção idade-série é mais elevada no Norte e Nordeste, com 41% e 36%, respectivamente. Sul e Centro-Oeste contam com uma taxa de 26%, e o Sudeste, com 21%. O Estado com maiores índices de distorção idade-série é o Pará, com 47%, seguido por Bahia, com 44%, Rio Grande do Norte e Sergipe, com 43%, e Amazonas, com 42%. O Estado com o menor porcentual é São Paulo, com 13%, seguido por Paraná, Santa Catarina e Goiás, com 23%” (Panorama da distorção idade-série no Brasil, Unicef).

Hipótese: Dar prioridade criando as condições para a implementação de tempo integral nas escolas com maior incidência de distorção idade-série, levando em consideração o desempenho de cada sala de aula individualmente e da escola como um todo.

Sugestões para a melhoria do novo ensino médio no Brasil: a universidade de portas abertas

Como aumentar as chances dos estudantes do ensino médio cursarem a universidade?

Privilegiando determinados conteúdos, esclarecendo os conceitos básicos das diferentes disciplinas e exercitando formas de raciocínio.

A equiparação dos estudantes dependerá de um pacto entre as redes estaduais de educação e as universidades públicas.

Muitas escolas particulares modernizaram o papel do professor, ampliando a participação dos jovens em atividades dentro e fora da escola, ampliaram o tempo de permanência, e incentivaram o uso de tecnologias. A diferença é muito grande entre a rede particular e a rede pública. Apesar das diferenças muitas escolas públicas habilitam seus alunos para os vestibulares adequando os conteúdos às demandas do Enem e dos vestibulares. A exitosa política de cotas das universidades procura reparar as desigualdades.

Sugestão número um para criar vínculos entre as escolas do ensino médio e a universidade:

Aproximar os alunos da universidade e os estudantes da escola pública por meio da definição de temas e correção de redações. Os estudantes da universidade, mediante bolsas, poderiam corrigir redações dos futuros vestibulandos das escolas públicas. Trata-se de criar vínculos. Hoje, muitos estudantes da USP já desenvolvem esta atividade para empresas particulares ganhando por volta de R$ 2,00 ou R$ 3,00 pela correção de cada redação. Pasmem diante do valor.

Que critérios utilizar para definir as temáticas?

A valorização da vida humana.

Sugestão número dois para criar vínculos entre as escolas do ensino médio e a universidade:

Valorizar igualmente as disciplinas e os Itinerários Formativos definindo poucas temáticas relevantes e com significado em âmbito nacional, parâmetro para avaliações do Enem e do vestibular.

Sugestão compatível com a BNCC:

Descrever e analisar as diversas formas defender o planeta e as populações originárias da destruição climática. Compreender os usos e abusos da matemática financeira e desvendar os mistérios da tecnologia como linguagem e instrumento do bem-estar social ou do mal-estar social. Analisar a produção, o uso e a distribuição de energia, no contexto da sobrevivência do planeta. Pesquisar diferentes formas de organização do Estado e de participação política.

Não se deve esquecer:

Os municípios sem energia elétrica e os povos originários devem contribuir propondo temas adequados à floresta, ao meio ambiente e à democracia. Quanto ao desenvolvimento cognitivo merecem destaque as habilidades de quem vive na floresta, culturas igualmente marcadas por raciocínios complexos.
Sugestão número três para criar vínculos entre as escolas do Ensino Médio e a universidade:

Tema, democracia.

Comparar diferentes formas de governo por meio de raciocínios matemáticos e analises históricas circunstanciadas.

Sobre o direito à sesta

Antes de terminar esta missiva gostaria de dar voz para um ilustre brasileiro de nome Griguilim e uma notável senhora chamada Jandaia. Gente boa de estilo manso, moradores da caatinga.

Sabendo da carta pediram para lembrar Vossa Excelência do direito ao cochilo depois do almoço. Eles aspiram por uma lei que garanta esta prerrogativa nas escolas de tempo integral. Um lugar de sombra para fazer a sesta depois do almoço. Um redário para repor energia nas aulas da tarde. Como o problema sempre é dinheiro e o tema é energia, pensei que a Petrobras podia financiar.

Energia boa, ministro: energia de gente.

Agradeço, caso seja possível, a leitura desta missiva. Em tempo de audiências públicas aproveito a oportunidade e envio as minhas modestas sugestões.

Cordialmente,

Janice Theodoro da Silva

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