Foto: Divulgação/Fonte Editorial

Livro destaca obras que narram as façanhas de Portugal e do Brasil colonial

Professores lançam Estudos sobre a Épica Luso-Brasileira, que traz análises de clássicos como Os Lusíadas, de Luís de Camões, e O Uraguai, de Basílio da Gama

23/02/2021
Por Claudia Costa

Os professores Jean Pierre Chauvin, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, e Cleber Vinicius do Amaral Felipe, do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), acabam de lançar o livro Estudos sobre a Épica Luso-Brasileira – Séculos XVI-XVIII. O livro analisa seis epopeias portuguesas: Os Lusíadas (1572), de Luís de Camões, O Naufrágio do Sepúlveda (1594), de Jerônimo Corte-Real, Ulisseia ou Lisboa Edificada (1636), de Gabriel Ferreira de Castro, A Conquista de Goa (1759), de Francisco de Pina e Melo, O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, e Caramuru (1781), de Santa Rita Durão, estudados a partir de prescrições estabelecidas por uma tradição que liga essas obras a seus modelos greco-latinos.

Jean Pierre Chauvin - Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Cleber Vinicius do Amaral Felipe - Foto: Arquivo Pessoal

Para o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP João Adolfo Hansen, que assina o prefácio do livro, “os autores escrevem com conhecimento, precisão e vivacidade sobre poemas portugueses dos séculos 16 e 17 e luso-brasileiros do 18, todos de um gênero hoje morto, o épico. As leituras de Cleber e Jean Pierre são arqueológicas. Têm pertinência antropológica e interesse histórico as interpretações que fazem da unidade do estilo dos poemas que estudam por meio da reconstituição minuciosa de seus preceitos poéticos e procedimentos técnicos antigos, greco-latinos, quinhentistas, seiscentistas, setecentistas, além da referência a leituras feitas por críticos e historiadores literários que se ocuparam deles desde o século 19”.

Como analisa Chauvin, “desde que foi decretado o fim da história, no final dos anos 1980, em consonância com o Consenso de Washington (que definiu os pilares do neoliberalismo), temos assistido a uma desvalorização programática e sistemática do passado e do pensamento, em detrimento do imediato consumível, do lugar-comum e da falácia modernizante, como se as matérias que nos precederam não fossem dignas de interesse (e menos ainda de estudo)”. O professor se refere à afirmação de Hansen que salienta que o gênero “épico” (que vigorou pelo menos entre a Antiguidade grega, oito ou nove séculos antes de Cristo, e o final do século 18 está “morto”. Segundo Chauvin, “não se trata apenas de uma constatação, mas de um modo de estimular a que o leitor reflita sobre tempos e concepções sobremodo diferentes: este em que tentamos sobreviver e aqueles em que produzir poesia pressupunha manipular vasto repertório, imitar modelos e considerar a adequação entre tema, gênero e estilo, segundo as regras do decoro”.

Aliás, destaca Chauvin, é justamente por se tratar de um gênero considerado “morto” que vale a pena discuti-lo. “Algumas obras discutidas no livro são praticamente desconhecidas do grande público hoje”, garante. “Nesse sentido, esses Estudos sobre a Épica Luso-Brasileira tentam resgatar poemas notáveis, escritos em acordo com as preceptivas retórico-poéticas, decorosos em relação ao que pedia o gênero épico, a façanha heroica, a linguagem grandiloquente e o estilo gravis (alto, elevado, sublime), como recomendado por Aristóteles, Horácio, Longino etc”, diz, e continua: “Observando os temas, pressupostos e métodos com que a pesquisa sobre poesia é realizada em nossos dias, não admira que em breve os versos produzidos durante o século 19 sejam considerados datados e sem interesse, que não o de ‘documento’ histórico”.

Camões lendo "Os Lusíadas", de Antônio Carneiro - Foto: Domínio Público, via Wikimedia Commons

Poemas épicos

O livro está dividido em  duas partes, com os três primeiros poemas analisados por Cleber Felipe e os outros três por Jean Pierre Chauvin. “Os seis ocupam-se de autores hoje lembrados e pouco lidos, como Luiz Vaz de Camões; de outros quase esquecidos e já praticamente não lidos, como Basílio da Gama e Santa Rita Durão; e de alguns nunca lidos e esquecidos, Jerônimo Corte-Real, Gabriel Ferreira de Castro, Francisco de Pina e Melo”, aponta Hansen no prefácio.

No primeiro capítulo, intitulado Camões e a Epopeia Lusíada: Notas Introdutórias, Felipe lê Camões historicamente, como apresenta Hansen. “Lembra ao leitor características nucleares do gênero épico e de Os Lusíadas (1572); mapeia lugares-comuns da proposição, da invocação, da dedicatória, do epílogo e de alguns fragmentos da narração do poema. Descrevendo-os e analisando-os com economia e precisão, elenca os elementos formais do gênero épico, acompanhando-os de elementos biográficos. Em seguida, trata analiticamente das partes convencionais do poema épico.” No segundo, A Poesia Épica e a Experiência Trágica: o Naufrágio de Sepúlveda, o autor discorre sobre o poema atribuído a Jerônimo Corte-Real, que possui cerca de 10.457 versos; e no último, A Fundação Épica de Lisboa na Ulisseia (1636), analisa a disposição do poema de Gabriel Ferreira de Castro.

Já na segunda parte, Chauvin informa que, entre os poemas analisados por ele, A Conquista de Goa, de Franciso de Pina e Melo, é bem menos conhecido, hoje, que O Uraguai, de Basílio da Gama, e o Caramuru, de Santa Rita Durão. “Penso que eles (me) interessam por diferentes motivos. Pina e Melo introduz o seu poema com uma espécie de minitratado sobre o gênero épico, o que reforça a hipótese de que esses homens tivessem consciência dos artifícios retórico-poéticos e como empregá-los no que escreviam. A importância de O Uraguai reside nas guerras resultantes de rara aliança entre portugueses e espanhóis, logo após o Tratado de Madri, firmado em 1750 – após dez anos de negociação entre as Coroas daqueles países. A figura de Basílio da Gama é curiosa: sabe-se que ele recebeu educação jesuítica no Rio de Janeiro, mas que, quando foi preso, incumbiu-se de promover uma ‘diatribe’ justamente contra a Ordem da Companhia de Jesus, com vistas a angariar os favores do Marquês de Pombal – de quem foi secretário durante muito tempo.”

Diogo Álvares Correia, o Caramuru - Foto: Reprodução/TV Bahia

Caramuru, por sua vez, reconta a história do “descobrimento” da Bahia, no início do século 16. “Como o poema foi publicado no final do século 18, a persona poética propõe uma genealogia da ‘conquista’ da Bahia, de modo que as visões da índia Paraguaçu, unida matrimonialmente com Diogo Álvares Correia, fingem ser premonição de um reino mais forte e poderoso, após Caramuru e sua esposa retornarem da França”, comenta. Segundo Chauvin, nos três casos, os poetas dispuseram as matérias, diálogos e episódios de maneira a ressaltar as virtudes heroicas, o discurso engenhoso, o éthos industrioso e as façanhas dos guerreiros lusitanos. “Para isso, Diogo Álvares Correia, Afonso Albuquerque e o general Andrade foram pintados segundo recomendavam os tratados antigos, que discorriam sobre os feitos extraordinários dos homens considerados superiores nas virtudes e excelentes no caráter.”

Processo de pesquisa

Segundo Chauvin, a ideia original partiu de Felipe e tinha como objetivo reunir e apresentar a estudantes e pesquisadores poemas do gênero épico que circularam no mundo português ou luso-brasileiro entre os séculos 16 e 18. “Nosso pressuposto é de que estamos diante de práticas letradas produzidas num tempo que os conceitos de ‘autor’, ‘obra literária’ e ‘público’ não tinham a conformação adquirida entre o final do século 18 e o início do século 19, que envolveu a mudança radical das sociedades de Antigo Estado para o mundo burguês, momento em que a ‘obra de arte’ perdeu parte substancial de seu estatuto, codificado pelo edifício retórico-politico-teológico, e passou a ser configurada e percebida como uma mercadoria, ou ‘bem cultural’ disputada segundo critérios que negavam a filiação a modelos e pretendiam ser ‘originais’.”

O livro reúne artigos produzidos nos últimos  quatro anos, como informa Chauvin. “Mas cumpre assinalar que eles se relacionam a pesquisas muito anteriores, que envolveram estudos sobre retórica, poética, história, práticas letradas, sociologia da corte etc., considerando o mundo cortesão, com suas regras e modelos, e a produção e circulação de poesia como arte de emulação de modelos e aplicação de preceitos retórico-poéticos, sem que o poeta perdesse de vista o lugar que ocupava na sociedade de corte, entre os dogmas veiculados pela Igreja Católica e poder temporal dos reis e o mundo de homens subordinados a seus desígnios.” No caso dos capítulos de Cleber Felipe, as pesquisas também se relacionam com sua iniciação científica, realizada quando ainda cursava a graduação em História; e no caso de Chauvin, os estudos sobre essas matérias tiveram início entre 2012 e 2013, quando se preparava para um projeto de pesquisa sobre Machado de Assis. “Naquela altura, os estudos sobre aspectos da retórica e da análise do discurso na obra do escritor despertaram meu interesse para me voltar mais detidamente para as práticas letradas produzidas no século 18 e as convenções que elas obedeciam”, complementa.

O professor ainda lembra que, como os estudos priorizam eventos, ideias e poemas produzidos entre os séculos 16 e 18, ficou claro que seria importante apresentar um pequeno panorama que percorresse aquele tempo. “Posso afirmar que Cleber Felipe e eu percorremos esses poemas com interesse nos pressupostos embutidos neles, no modo como recorriam às preceptivas, imitavam modelos e ilustravam uma forma mentis totalmente diversa da nossa. Definitivamente, eles estão para além da suposição de que sejam ‘datados’ e só possuam interesse como ‘documento’ histórico”, conclui.

Estudos sobre a Épica Luso-Brasileira – Séculos XVI-XVIII, de Jean Pierre Chauvin e Cleber Vinicius do Amaral Felipe, Fonte Editorial, R$ 46,90  


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