“Será que o atual presidente da China quer se tornar o Mao Tsé-Tung do século 21?”

Marília Fiorillo comenta o episódio em que, no 20º Congresso do PCC chinês, o ex-presidente Hu Jintao, que estava sentado ao lado do presidente Xi Jinping, foi removido e escoltado por seguranças para fora do recinto

 04/11/2022 - Publicado há 1 ano

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“Na metodologia da Análise Crítica do Discurso (ACD), sabe-se que o não dito é mais revelador que o dito, ou escrito. Idem no que diz respeito à linguagem corporal, que muitas vezes diz mais que palavras. Foi o que aconteceu há alguns dias no 20º Congresso do PCC (Partido Comunista Chinês), um episódio que deixou todos intrigados. O encontro fortaleceu os poderes autocráticos do atual presidente Xi Jinping, nomeado para um terceiro mandato de cinco anos. Mas uma cena roubou a atenção do mundo inteiro, exceto dos chineses, que não puderam vê-la na mídia estatal. O ex-presidente Hu Jintao, membro do Presidium, que estava sentado ao lado de Xi, foi abruptamente removido e escoltado por seguranças para fora do recinto. O vídeo, disponível na web, mostra a surpresa de Hu Jintao ao ser retirado da cadeira, segundos após confiscarem seu folder da mesa (seriam objeções a Xi?). Ele ainda tenta, já de pé, dizer algo ao atual presidente e ao secretário-geral, que não reage. Foi uma cena deliberada de humilhação pública que contrasta com a tradicional coreografia de discrição e sigilo da política chinesa.

“Mais: a cena foi calculada para ser filmada exatamente no momento em que a mídia internacional era admitida no Congresso. Um recado para o mundo. Dissidências internas, disputas, expurgos e prisões dos discordantes foram e são recorrentes na história do Partido Comunista chinês. Mas sempre eram urdidas e conduzidas nos bastidores, com opacidade, quando não em segredo. A remoção espalhafatosa do ex-presidente causou estranheza. A explicação oficial foi a má condição de saúde de Hu, que tem 79 anos. Como ninguém comprou essa versão, especula-se que foi uma mensagem para não deixar dúvidas de que Xi Jinping pretende se tornar o Mao Tsé-Tung do século 21, enfeixando todas as decisões, e todo poder, em suas exclusivas mãos. Se alguém tinha hesitações sobre a volta do totalitarismo (o partido acima do Estado e o líder acima do partido), elas foram dissipadas.

“O Mao Tsé-Tung original utilizava terceiros em suas artimanhas para destruir os oponentes, como fez durante a Revolução Cultural, encarregando sua mulher e a camarilha dos 4 de incitar a juventude a colocar chapéus de burro em intelectuais e políticos suspeitos e espancá-los. Terceirizou o trabalho sujo, eliminou quem podia lhe fazer sombra (como Deng Xiao Ping, que chegou a ser preso) e em seguida condenou a mesma camarilha que agira a seu serviço. Com isso, manteve sua imagem intocável. O candidato a Mao do século 21, Xi Jinping, subverteu essa conduta.

“O que aconteceu com a impassível e inescrutável China em que tudo se fazia em ardiloso sigilo? Será que a segunda economia mundial e provável centro de gravitação do planeta, num futuro bem próximo, cedeu à tentação do modus operandi mais disseminado na política contemporânea, a bravata? Os próximos passos do Mao Xi Ping dirão. Hu Jintao está desaparecido.”


Conflito e Diálogo
A coluna Conflito e Diálogo, com a professora Marília Fiorillo, vai ao ar quinzenalmente sexta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9 ) e também no Youtube, com produção da Rádio USP, Jornal da USP e TV USP.

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