Quando pintar a nação era construir o moderno

Pesquisador revela como a pintura em Portugal e no Brasil no início do século 20 tentou criar ideia de nação

 13/08/2021 - Publicado há 3 anos
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Fotomontagem por Rebeca Alencar com as artes de José Malhoa e Almeida Júnior

Tintas, pincéis e cavaletes mobilizados deste e do outro lado do Atlântico para capturar as imagens da nação. No Brasil, caipiras em ambientes rústicos com suas cozinhas de chão de terra batida, fumo-de-corda e violas na janela. Em Portugal, camponeses na colheita, animais pastoreando e festejos tradicionais. Em diferentes continentes, dois pintores de trajetórias repletas de aproximações que revelam como o sistema artístico funcionava na segunda metade do século 19.

Esses são os elementos que compõem Modernos Arcaísmos: Arte e Nação no Brasil e em Portugal no Final do Século 19 pelas Obras dos Pintores Almeida Júnior e José Malhoa, tese de doutorado de Weslei Rodrigues, defendida este ano no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

O trabalho compara os sistemas de arte do Brasil e de Portugal no período que vai do final do século 19 ao começo do século 20, a partir da trajetória de dois pintores pertencentes à mesma geração, o brasileiro José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899) e o português José Vital Branco Malhoa (1855-1933). A pesquisa mostra as semelhanças e diferenças nos caminhos que fizeram cada um ocupar, em seus respectivos países, o posto de “pintores nacionais”.

Rodrigues partiu da hipótese de que os pintores, com estilos muitas vezes aproximados e trajetórias aparentadas, teriam ocupado posições similares no sistema artístico de seus países. Com suas pinturas sobre temas do universo rural – como caipiras, camponeses, paisagens e habitações do campo – ambos tornaram-se artistas reconhecidos por representarem, de maneira considerada competente pela crítica da época, a nação.

Tanto Almeida Júnior quanto José Malhoa, segundo o pesquisador, produziram arquétipos para as narrativas nacionais. Suas pinturas de tipos populares eram interpretações sobre a nação, brasileira ou portuguesa, ainda que não tivessem originalmente sido pensadas para esse fim.

A comparação estabelecida pelo autor permitiu revelar relações entre os campos artísticos brasileiro e português, além das estratégias de ação que se repetiam, lá e cá, e incluíam espaços comuns de circulação, aprendizado, exposição e sociabilidade, atrelados a centros europeus como Roma e Paris. Isso fez com que Rodrigues identificasse um sistema artístico transnacional em expansão, fator determinante para explicar as similaridades nas trajetórias de Almeida Júnior e José Malhoa.

De acordo com o autor, no período estudado, a atuação e o reconhecimento internacional eram fundamentais para a consagração dos artistas em seus contextos nacionais. Além disso, Rodrigues aponta em seu trabalho que as semelhanças entre os artistas emergiam também dessa rede transnacional de critérios, relações e práticas artísticas. Um sistema artístico transnacional integrava artistas e críticos, ultrapassando fronteiras regionais e influenciando estilos, temas e recepções dos trabalhos.

Isso significa que algumas semelhanças técnicas aparentes entre as obras de Almeida Júnior e José Malhoa, como paleta de cores e temáticas, ligavam-se a dinâmicas transnacionais. Além disso, suas trajetórias – com passagens pelas academias de arte do Rio de Janeiro e Lisboa e estudos com mestres de formação similar – também integram essa conexão. Como artistas do mundo todo frequentavam os mesmos espaços de formação na Europa e habitavam os mesmos locais de sociabilidade, as semelhanças eram potencializadas.

Um traço fundamental desse processo transnacional, sugere o trabalho de Rodrigues, é a busca pela construção de uma ideia de nação, projeto que extrapola o campo da pintura e domina o imaginário da segunda metade do século 19. A generalizada reimaginação das histórias nacionais, segundo o pesquisador, aparece através de uma obsessão pelo passado, pela história e pelo modo de narrá-la. Movimento que surge em aparente contradição com a demanda por modernidade, outro aspecto do imaginário do período.

Por isso o autor fala em “arcaísmos modernos”. Os trabalhos de Almeida Júnior e José Malhoa, com seus temas rurais, vêm ao encontro do impulso revisionista e narrativo das elites dirigentes e intelectuais, mobilizado para definir mitos de origem para a condução política do presente. É um projeto de modernidade, portanto, que se funda sobre o interesse pelo passado.

Por isso o nacional se torna o princípio criador da modernidade. Um dos exemplos mais bem-acabados disso foram as Exposições Universais, com seus pavilhões dispondo os países sucessivamente e mostrando o que era julgado traço essencial de cada nação. E é nesse contexto que surge a consagração do “pintor nacional” como aquele que melhor representava a nação com suas cores e traços.

Contudo, ao final da pesquisa, Rodrigues identifica que os dois pintores não foram, igualmente, pintores nacionais. Malhoa obteve esse reconhecimento unânime, mesmo antes de sua morte, mas Almeida Júnior, dado seu pertencimento a um projeto de identidade nacional mais regional, ligado a São Paulo, atingiu apenas parcialmente esse posto. Se em Portugal o camponês se tornou o elemento central do imaginário nacionalista – inclusive sendo incorporado pelo salazarismo –, o caipira de Almeida Júnior firmou-se apenas como um entre vários símbolos possíveis da nacionalidade brasileira.

A tese de doutorado Modernos Arcaísmos: Arte e Nação no Brasil e em Portugal no Final do Século 19 pelas Obras dos Pintores Almeida Júnior e José Malhoa, de Weslei Rodrigues, pode ser acessada na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.


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