Possível revogação da proteção ao aborto nos EUA sugere crescimento de ideologias conservadoras

Vazamento de rascunho de decisão da Suprema Corte americana sobre a proibição da interrupção da gravidez evidencia batalha ideológica em ano eleitoral

 12/05/2022 - Publicado há 2 anos
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Decisões legais de peso como Roe versus Wade fazem parte da tradição política que permeia o Judiciário americano – Foto: Reprodução/Piqsels
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Um documento da Suprema Corte americana vazado pelo site Politico na última semana indicou que, em breve, os Estados Unidos podem anular a proteção legal ao aborto no país. A decisão, conhecida como Roe versus Wade, que concede o direito ao aborto nos primeiros três meses de gravidez, se tornou parte da jurisprudência americana desde 1973. Entretanto, o precedente se encontra novamente em disputa desde que o Estado do Mississippi tentou passar uma legislação que torna o aborto ilegal a partir de 15 semanas de gravidez, dois meses antes do período previsto em Roe versus Wade.

Embora não seja uma lei, a decisão se baseia na 14ª emenda constitucional que, após ser introduzida no período posterior à Guerra Civil americana, é responsável por resguardar uma série de direitos que envolvem a proteção da privacidade dos cidadãos. 

Ana Lúcia Pastore – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Fato é que, diferentemente do Brasil, decisões legais de peso como Roe versus Wade fazem parte da tradição política que permeia o Judiciário americano. Com isso em mente, e levando em consideração o crescimento da polarização no país desde a eleição de Donald Trump, em 2016, a coordenadora do Núcleo de Antropologia do Direito (Nadir) da USP, Ana Lúcia Pastore, reforça o caráter político polarizado local e que ficou ainda mais nítido agora: “Os Estados Unidos constituem um país muito dividido politicamente, isso ficou claro nas últimas eleições ao mostrar que Donald Trump recebeu muitos votos em vários Estados de comunidades muito conservadoras. Esse vazamento mostra uma divisão que já existe há muito tempo entre democratas e republicanos”.  

Janina Onuki – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Na opinião de Janina Onuki, professora do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), o caso é fruto do crescimento de ideologias conservadoras: “Esse tema da proibição do aborto só reforça a percepção sobre as mudanças importantes que vêm ocorrendo em vários países do mundo, revelando a ascensão perigosa de grupos conservadores e de direita. Eu acho que a gente deve ficar atenta para isso também aqui no Brasil”.

Repercussões do vazamento

Apesar do recente vazamento ter sido considerado “sem precedentes”, quando o assunto é Roe versus Wade não é a primeira vez que um documento chega às mãos da imprensa pouco antes de sua publicação.

Em 1973, foi também um vazamento na Suprema Corte americana que noticiou a decisão iminente. A fonte foi um funcionário da Suprema Corte, que forneceu a informação a um repórter da revista Time, com a condição de que ele só publicasse depois que a decisão fosse tornada pública. No entanto, um atraso no anúncio da decisão levou a revista a se apressar inadvertidamente. O juiz responsável, Warren Burger, ao ler sobre a notícia nas páginas da revista, pediu a punição do vazador. Agora, diante do rascunho que foi confirmado como legítimo pela própria Suprema Corte, os Estados Unidos se encontram em estado de ebulição sobre o assunto. 

O tema da proibição do aborto só reforça a percepção sobre as mudanças importantes que vêm ocorrendo em vários países do mundo – Foto: Reprodução/Flickr

Para a presidente e CEO do Centro de Direitos Reprodutivos, Nancy Northup, em entrevista à repórter Kara Swisher, no The New York Times, as consequências legais, políticas e pessoais da anulação das proteções ao aborto podem gerar um “efeito em cascata” que não só prejudicaria outras liberdades pessoais, mas também dificultaria o acesso à contracepção e permitiria a futura reversão da igualdade no casamento.

De acordo com Agnès Callamard, secretária-geral da Anistia Internacional, o retrocesso “daria um exemplo terrível que outros governos e grupos antidireitos poderiam aproveitar em todo o mundo em uma tentativa de negar os direitos de mulheres, meninas e outras pessoas que podem engravidar”, disse em pronunciamento oficial.

Influência dos EUA

Não por acaso, veículos de mídia locais, como, por exemplo, a Rádio Pública Nacional (NPR), reforçaram que muitos países, inclusive com populações majoritariamente católicas, têm facilitado o aborto nos últimos anos. Entre eles estão a Irlanda, em 2019, a Argentina, em 2020, e o México, que votou pela descriminalização em 2021.

No Brasil, a professora Janina defende que o debate pode, de maneira similar, causar impacto. “O tema da proibição do aborto também é polarizado aqui e tem sido recuperado nos últimos meses. Esse debate coloca em lados opostos grupos liberais e conservadores, acirrando os conflitos políticos que cada vez mais são influenciados por temas culturais e de valores”, discorre. “Acho que isso ganha uma projeção ainda maior num contexto eleitoral no Brasil, em que esses temas têm sido recuperados de forma tão polarizada quanto nos Estados Unidos”, complementa. 

O Brasil é um dos países em que o aborto é considerado um crime contra a vida – Foto: Reprodução/Flickr

Em 2022, tanto os Estados Unidos quanto o Brasil enfrentarão eleições no final do ano. Para Ana Lúcia, o debate não terá tanta influência nos rumos eleitorais daqui. “A política brasileira tem bastante autonomia em certos campos. Não creio que sejam reflexos tão diretos que venham de fato a alcançar as eleições brasileiras. Claro que os candidatos à Presidência vão fazer uso eventual dessa decisão da Suprema Corte a seu favor, mas assim como vão fazer uso de inúmeras outras coisas”, pondera.  

Ela também acredita que, no que se refere à discussão, o Brasil irá apenas reforçar sua posição contrária à legalização do aborto. “O Brasil é um dos países em que aborto é considerado um crime contra a vida, inclusive aqui vai a júri, e se respalda no fato de outros países também proibirem o aborto, especialmente países em que o catolicismo é muito presente”, diz. “Veja que o fato do aborto ser permitido nos Estados Unidos não influenciava a discussão no Brasil. O Brasil continuava refratário a acatar a interrupção da gravidez como um direito, então, se essa posição acatar nos Estados Unidos, só vai reforçar o que já existe no Brasil”, completa.

Contudo, a coordenadora do Nadir reconhece que os posicionamentos internos dos Estados Unidos têm inegáveis repercussões globais. Sobre esse ponto, Janina completa: “O Brasil tem um histórico longo de parceria com os Estados Unidos, que é um importante parceiro econômico comercial e também é um país que nos influencia cultural e socialmente. Essa influência tem sido reforçada pela maior proximidade pessoal entre as lideranças políticas, como no caso do atual presidente brasileiro e do ex-presidente norte-americano”.

Em relação aos desdobramentos da possível anulação da decisão judicial, Janina alerta: “Os últimos acontecimentos políticos nos Estados Unidos talvez não nos afetem diretamente, porque nós temos um sistema jurídico distinto, mas certamente afetarão o Brasil ao influenciar o debate e a reprodução de uma mesma polarização em relação ao tema do aborto e outros temas polêmicos”.  

Com colaboração de Denis Pacheco


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