Museu histórico. O DOI-Codi

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 29/08/2023 - Publicado há 8 meses

Museu é uma espécie de despertador. Ele usa objetos do passado para acordar as pessoas, diante dos problemas do presente.

É hábito, típico do século 19, imaginar o museu histórico como um repositório de objetos antigos capazes de reproduzir o passado. Doce ilusão. O que passou, passou. A ausência de pessoas ou objetos queridos nos acompanha. São estilhaços do passado. Gatilhos. Inesperadamente podem desvelar absurdos naturalizados pelo cotidiano.

O que restou do golpe civil-militar ocorrido em março de 1964?

Um espaço e um edifício onde foi alojado, nos anos 70 do século passado, o Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações e Defesa Interna (DOI-Codi), órgão subordinado à 2ª seção do Estado Maior do Exército. Um pequeno prédio de dois andares onde eram realizadas torturas, assassinatos e desaparecimentos de presos políticos. Ele é um dos marcos da relação entre as Forças Armadas e a sociedade brasileira, tema em questão na atualidade.

Em 1964 os militares interromperam o mandato de um presidente eleito democraticamente. Cassaram deputados escolhidos por meio do voto e interferiram no Judiciário, aposentando compulsoriamente os ministros Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal. Mais grave ainda, os militares impediram o julgamento de habeas corpus, favorecendo a tortura, os desaparecimentos e as mortes de presos políticos. Com o apoio de setores da sociedade civil, o golpe deitou raízes na história brasileira.

Matéria do passado, o golpe civil-militar ocorrido em 1964 sugere reflexão, no presente.

Como criar trilhas em favor do pensamento crítico?

Fragmentos de objetos, materiais e imateriais, expostos para visitação pública em um museu, contribuem para humanizar a história, na luta contra a barbárie humana.

O nascimento da crítica pode se dar por meio da arquitetura de um prédio, sua inserção na cidade e pelas exposições montadas em um museu. O projeto, concebido por um curador, pode expressar a falta ou o excesso, a ruptura ou continuidade, semelhanças ou diferenças. Museus, por meio de diferentes tipos de linguagem, são úteis para despertar humanidades adormecidas. Exposições fazem ver e sentir, sinalizam perigos, expõem doçuras e tragédias e, principalmente, dinamitam o senso comum.

O museu histórico é um despertador humano-político. Desperta reflexões sobre a história de uma pessoa, região, um país ou mesmo sobre o equilíbrio entre os planetas.

Sapatos em grande quantidade no Museu do Holocausto fazem ver, no presente, o passado. Fazem um número virar uma pessoa, depois outra pessoa, mais uma outra pessoa, pessoa, pessoa, pessoa, pessoa, pessoa, pessoa, pessoa, pessoa, pessoa, pessoa, pessoa, pessoa. Vazios, ao criar estranhamento, estimulam o pensamento crítico, diminuem a surdez e a cegueira, tendência natural dos humanos e dos humanoides.

Museu guarda sapatos de vítimas enviadas para as câmaras de gás nazistas – Foto: M.Bucka/ Wikimedia Commons
“Torre do Holocausto. Entra-se por uma pesada porta de metal em uma torre escura, onde se pode vislumbrar alguma luz entrando por cima e ouvir sons indicando que a vida continua lá fora. A ideia concebida pelo arquiteto Daniel Libeskind é nos fazer sentir quão longe da luz e da vida estavam aqueles esperando o seu próprio extermínio” – Foto: Raimond Spekking/Wikimedia Commons

A arquitetura de Daniel Libeskind, por exemplo, a Torre do Holocausto, é nitroglicerina pura. Assombra qualquer um. Ouvir o ruído da vida lá fora, estando no cárcere, diante da morte evidente, é desafio para gigantes. É duro caminhar para o vazio.

As escavações no DOI-Codi, na Rua Tutoia, no bairro do Paraíso, em São Paulo – onde, durante os anos de ditadura militar, centenas de pessoas foram mortas, desaparecidas e torturadas – compõem um projeto realizado com parceria da Universidade Estadual de Campinas e da Universidade Federal de Minas Gerais.

A USP, por meio do seu Centro de Preservação Cultural e da Casa de Dona Yayá, auxiliou a iniciativa, coordenada por Debora Neves, realizando um ciclo de debates: Conhecendo o DOI-Codi/SP.

Vestígios

Inscrições de prisioneiros, em uma parede escavada do DOI-Codi, são indícios de fatos ocorridos em tempo de ditadura. Hábito repetido até os dias de hoje, por encarcerados. As prisões no Brasil, verdadeiras escolas do crime, estão lotadas. Passado e presente se misturam.

Testemunhos de prisioneiros sobreviventes se confundem, na violência como foram tratados, ontem e hoje. Mortes e torturas não abandonaram os noticiários, apesar da Constituição de 1988, a Constituição cidadã.

Vestígios falam, tiram dúvidas, são provas para os incrédulos. Como lembrou Debora Neves, organizadora do projeto do DOI-Codi, alguns sobreviventes da ditadura argentina lembravam apenas o chão por onde caminharam de olhos vendados.

Ladrilhos têm lugar na história.

No DOI-Codi o assoalho era de tacos de madeira. O luminol foi utilizado na escavação. Produziu uma luz azulada, em razão de íons de ferro. Provavelmente sangue incorporado à madeira. O taco do chão e o sangue aumentam a escuta da história. Gatilho da memória.

De quem é o sangue? Ele tem nome, CPF, história?

Observar a história paulistana em tempos de ditadura militar é esclarecedor. As palavras usadas para uma casa de torturas demonstram as ambiguidades do viver em São Paulo. Uma cidade que dobrou sua população: de 5.924.615 habitantes em 1970 para 11.451.245 em 2022. Cidade desumana. Abarrotada de gente, intransitável, com uma frota de 8.889.095 veículos, arrogante nos seus edifícios monumentais e desigual na ocupação do solo.

Uma cidade que alojou uma “casa” destinada para torturas em plena zona residencial, metida entre famílias, crianças e pipoqueiros. Faz parte dos absurdos: uma cidade que não para de crescer. Mais estranho ainda é a denominação dada à casa de tortura: Casa da Vovó. Um centro de torturas, mortes e desaparecimentos, criado pelo Estado brasileiro, pela 2ª seção do Estado Maior do Exército.

Ao redor da edificação, na Rua Tutoia, no bairro ironicamente denominado Paraíso, famílias dormiam, levavam seus filhos para a escola e ouviam gritos dos torturados. Um macabro dia a dia em um bairro de classe média onde a fome não batia à porta. Imaginem por um instante dormir, comer e amar ao som de gritos.

Perímetro de tombamento sobre foto aérea da antiga sede do DOI-CODI – Foto: CONDEPHAAT/Reprodução

Sim, é correto falar em ditadura civil-militar. O lugar do edifício conjugava violência e famílias.

A extrema direita tem raízes históricas profundas na história brasileira. Não se pode esquecer a Marcha da Família com Deus e pela Liberdade. Trocar o significado das palavras é hábito antigo. Não surgiu agora.

Famílias não marcham, andam. Soldados marcham.

Deus é contra a pena de morte. Não matar é o quinto mandamento.

Liberdade como domínio da vontade é uma palavra merecedora de discussão entre os cidadãos da República.

Museu, o presente e o passado

Os brasileiros, diferentemente dos argentinos e chilenos, sempre idealizaram as Forças Armadas para além do seu papel, de defender a pátria e os poderes constitucionais. A farda foi incorporada nos ideais românticos e na vontade reprimida de ordem e progresso. Palavras inscritas na bandeira nacional. Machado de Assis, no seu conto “O espelho” deixa importantes indícios sobre o gosto pelas fardas. Vale a pena reler o conto.

“Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos… Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda.”

Apesar dos esforços da literatura, da música e das artes, muitos brasileiros guardaram e guardam no inconsciente, mediante uma ligeira ascensão social, uma vontade de ordem e obediência cega. Sem notar incorporaram como desejo a estética dos filmes de Leni Riefenstahl: combatentes de Hitler, perfeitamente enfileirados.

Heinrich Himler (esquerda). Adolf Hitler (centro) e Viktor Lutze (direita) – Foto: Georg Pahl/Das Bundesarchiv

A ordem e o progresso não impediram o óbito por sufocamento de Genivaldo, a morte de crianças por bala perdida, e as execuções sistemáticas pelo braço armado do Estado. O assunto merece reflexão crítica. A “banalidade do mal” prevaleceu nas mãos dos guardas, nas esquinas dos 26 Estados brasileiros e nos quarteirões do Distrito Federal.

Os museus históricos podem ajudar a raciocinar e simbolizar. Exercitar o que é o respeito à Constituição. Comparar o funcionamento de diferentes Estados nacionais, seus acertos e erros. E, especialmente, refletir sobre obediência cega, confrontando a obediência com o velho e discutido livre-arbítrio, capacidade de controlar a vontade e discernir o bem e o mal. Exercício necessário para a construção de uma sociedade política minimamente sadia.

A Casa de Dona Yayá

Os debates sobre o DOI-Codi ocorreram no Centro de Preservação Cultural da USP, na Casa de Dona Yayá, rica herdeira, declarada por familiares como incapaz, mantida em manicômio e, posteriormente, na prisão em sua própria casa. Os paulistanos moradores em torno dessa casa ouviam gritos de Dona Yayá. Eram os gritos do Bixiga. Não, os do Paraíso. A imprensa denunciou.

Prédios, assassinatos e gritos fazem parte da história paulistana ontem e hoje.

Casa de Dona Yayá no Bixiga – Foto: Eduardo Costa/CPC-USP

Dona Yayá

“O casarão da Rua Major Diogo, 353, no Bixiga, guarda a história de Sebastiana de Mello Freire, a Dona Yayá, que inspira muitas versões diferentes: seria ela vítima de uma conspiração ou uma pessoa doente? Uma mulher à frente do seu tempo ou apenas louca? A casa onde ela viveu a maior parte de sua vida, bem cultural da Universidade de São Paulo, é parte dessa memória.

Nascida em 21 de janeiro de 1887, de família da elite paulistana, Yayá perdeu os pais aos 13 anos, e o único irmão cometeu suicídio cinco anos depois. Vivia em companhia de sua madrinha, afilhados e amigas em um palacete na Rua Sete de Abril. Nunca se casou, nem teve filhos. Em 1919, com pouco mais de 30 anos, Yayá apresentou recorrentes sinais de desequilíbrio emocional que levaram à sua internação em uma instituição hospitalar.

Os laudos médicos atestavam sua condição de paciente psiquiátrica e a necessidade de cuidados especiais para tratamento. Ela foi considerada incapaz de administrar sua própria vida e seus bens, recebendo interdição judicial. Essa história, amplamente questionada pelo jornal sensacionalista O Parafuso, comoveu a sociedade paulistana.

Um ano depois, por recomendações médicas, Yayá passaria a receber tratamento em casa, em melhores condições, em um ambiente de tranquilidade e segurança. Veio então morar na Rua Major Diogo, uma antiga chácara onde Yayá permaneceu reclusa por 40 anos, em companhia de suas cuidadoras e empregados.

Com base nessa rica história material e imaterial, o imóvel foi tombado pelo Estado de São Paulo em 1998, e pelo município em 2002. Desde 2004 é sede do Centro de Preservação Cultural da USP, órgão que oferece ao público uma série de atividades no âmbito da cultura e extensão universitária que estreitam as relações da Universidade com o bairro do Bixiga e com a sociedade em geral.”

(Fonte: https://prceu.usp.br/noticia/quem-foi-dona-yaya/)

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