Tensões globais e geopolítica: Europa quer criar um Clube das Matérias-Primas Críticas

Por Elaine Santos, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

 11/07/2023 - Publicado há 10 meses

Há alguns meses, publiquei um artigo nesta seção de articulistas abordando as políticas relacionadas aos minerais estratégicos no Brasil, no qual mencionei a criação do Comitê Interministerial de Análise de Projetos Minerais. O objetivo desse comitê era articular ações entre órgãos públicos, a fim de priorizar os esforços governamentais para o licenciamento ambiental dos projetos de produção de minerais estratégicos. Mesmo em âmbito nacional, essas alterações nas políticas relacionadas aos minerais estratégicos também refletem o atual contexto geopolítico.

Uma evidência dessa relação pode ser observada no ato legislativo apresentado em março de 2023 pela Comissão Europeia. Esse ato visa lidar com a interrupção das cadeias de suprimento e buscar autonomia estratégica em relação às matérias-primas críticas. Para tanto, o novo regulamento estabelece metas ambiciosas até 2030, buscando simplificar os procedimentos de licenciamento, além de incentivar o desenvolvimento de programas nacionais de exploração de recursos geológicos. Além disso, o regulamento atualizou a lista de matérias-primas críticas, incluindo arsênico, feldspato, hélio e manganês, reconhecendo sua importância estratégica nos setores de tecnologia, energia e indústria da União Europeia (UE). As metas estabelecidas até 2030 incluem: minerar 10% do consumo anual de matérias-primas críticas dentro das fronteiras da UE, obter 15% dessas matérias-primas por meio da reciclagem e processar e refinar pelo menos 40% delas internamente, para impulsionar a capacidade industrial e agregar valor aos recursos.

Com o intuito de atingir essas metas, a UE planeja simplificar os procedimentos de licenciamento, reduzindo os prazos para 24 meses no caso de extração e 12 meses para processamento e reciclagem. Os Estados-Membros serão incentivados a desenvolver programas nacionais de exploração de recursos geológicos, promovendo a autossuficiência e o desenvolvimento. ​​Outro objetivo do regulamento é garantir que a dependência de qualquer matéria-prima crítica de um único país terceiro seja inferior a 65% do consumo anual da UE.

De acordo com o vice-presidente executivo responsável pelo comércio da UE, Valdis Dombrovskis, “As matérias-primas críticas são fundamentais para a nossa competitividade, tendo em conta o nosso objetivo de liderar as indústrias ecológicas do futuro. Vamos intensificar e acelerar as nossas próprias capacidades e construir relações mundiais mais fortes com base na confiança, na abertura e no benefício mútuo. Os acordos comerciais recentemente celebrados com o Chile e os futuros acordos com parceiros como a Austrália ou a Indonésia ajudarão a apoiar cadeias de abastecimento sustentáveis e resilientes. Criaremos um Clube das Matérias-Primas Críticas a nível mundial com parceiros fiáveis que estão dispostos a desenvolver as suas próprias indústrias de matérias-primas críticas”.

No entanto, a tendência atual de adoção de políticas voltadas para a reindustrialização e de caráter protecionista por parte dos Estados Unidos e da Europa, assim como a busca por parceiros “fiáveis” e fora da China, tem levado a uma série de sanções comerciais. Um exemplo disso ocorreu no final de 2022, quando o Canadá baniu do país três empresas chinesas do setor de mineração de lítio. Além disso, em 2022, os Estados Unidos anunciaram uma série de medidas para restringir a exportação de semicondutores contendo tecnologias norte-americanas para a China, regras que possivelmente serão apertadas nos próximos meses. Mais recentemente, a China impôs restrições às exportações de gálio e germânio, juntamente com seus compostos químicos, utilizados em chips de alta tecnologia. De acordo com os Serviços Geológicos dos Estados Unidos (USGS, 2023), a China produz aproximadamente 98% do gálio mundial e 70% do germânio. Essas sanções têm impactos significativos em setores industriais dos Estados Unidos, incluindo o setor de baterias e veículos elétricos.

Portanto, como alertou a professora Birgit Mahnkopf, a geopolítica energética atual não se apresenta com uma roupagem verde e amigável, como pode parecer às vezes. A ordem internacional está colapsando, e os conflitos continuam abertos. Além disso, as cadeias de abastecimento de energia e matérias-primas estão nas mãos de alianças mutáveis entre Estados e empresas privadas. Ou seja, são relações que costumam ser voláteis e que podem mudar de acordo com os interesses envolvidos. Isso contraria a ideia de que apenas a disponibilidade dos recursos ou a vontade política nacional/regional regem e determinam os fluxos dos recursos desde suas origens até o consumo final. Portanto, as decisões relacionadas à extração e fornecimento desses recursos estão muito influenciadas por alinhamentos políticos e interesses econômicos, levando em consideração as alianças, parcerias e possíveis “clubes” estabelecidos pelos países envolvidos.

Na definição das políticas recentes, lidar com o poder crescente da China e a perda da liderança tecnológica na lógica imperialista da Europa e dos Estados Unidos tem sido uma questão constante. Particularmente, considero interessante observar que, nas políticas norte-americanas e europeias para as matérias primas críticas, existe uma mistura entre a consciência da dependência desses países em relação ao gigante asiático e uma ingenuidade em acreditar que suas ações não terão consequências retaliatórias, como poderia acontecer em outros períodos históricos.

Nesse sentido, já que estamos no mês de julho, um período de diminuição de atividades acadêmicas (infelizmente, não para mim), considero que vale a pena ler o livro A guerra, a energia e o novo mapa do poder mundial. Logo no primeiro artigo, José Luís Fiori menciona que a história das guerras nos ensina que a paz conquistada por meio da guerra e da submissão dos derrotados acaba se tornando o ponto de partida para uma nova guerra de revanche dos derrotados. Sinal dos tempos!

Outro livro recentemente lançado que nos ajuda a compreender os movimentos da geopolítica energética é O Novo mapa: energia, clima e o conflito entre as nações, escrito por Daniel Yergin. Nessa obra, o historiador econômico analisa a produção em grande escala de xisto, a ascensão das energias renováveis, como a eólica e a solar, e a eletrificação da frota automobilística. O livro também apresenta um texto polêmico sobre as políticas petrolíferas no Brasil e no México, especialmente para aqueles leitores menos pragmáticos que se deixam levar apenas pela emoção ao analisar as últimas décadas do Brasil. São sugestões de leitura que nos ajudam a pensar coletivamente sobre temas tão atuais e importantes para o Brasil: sua relação histórica com as matérias-primas e o extrativismo, a dependência econômica e a energia.

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