2022: entre marcos e crises, a urgência de ações transformadoras

Por Gabriela Di Giulio, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, e João Nunes, Senior Lecturer na Universidade de York (UK)

 11/07/2022 - Publicado há 2 anos
Gabriela Di Giulio – Foto: Arquivo pessoal
João Nunes – Foto: Arquivo pessoal

 

Uma crise de insegurança alimentar e nutricional que se revela em níveis de fome superiores aos já registrados e evidencia o enorme descompasso entre a produção e a distribuição desigual de alimentos. Uma emergência de saúde pública global que produz sofrimento generalizado e confirma processos de vulnerabilização. Um modelo neoliberal que acentua a desigualdade econômica, acelera o enfraquecimento de serviços públicos de assistência e compromete a garantia de direitos humanos. O aumento expressivo na frequência, intensidade e magnitude de eventos extremos climáticos. A inefetividade das poucas ações adotadas para o clima, aliada aos efeitos perversos das dinâmicas de planejamento territorial, a carências infraestruturais, à supressão de infraestrutura verde e azul, a condições de vulnerabilidade e as mudanças em curso aceleradas pelas ações antrópicas. A perda contínua de biodiversidade, que não apenas acelera a deterioração de serviços ecossistêmicos imprescindíveis para a sobrevivência da humanidade, mas desvela a incapacidade de reverter o modelo predatório de espoliação da natureza e postular um modelo baseado na solidariedade e respeito com a diversidade biológica.

Os efeitos sinérgicos e cumulativos dessas crises não deixam dúvidas sobre a inexistência de um compromisso real e efetivo na reversão do paradigma vigente, um paradigma que comprovadamente intensifica as condições de produção de riscos sistêmicos, reafirma relações de dominação, amplifica vulnerabilidades, reproduz iniquidades e redefine ameaças sociais.

Relembramos nesse ano importantes marcos na agenda ambiental global. Cinquenta anos após a realização da primeira conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente, 35 anos da publicação do Relatório Nosso Futuro Comum, e 30 anos após a realização da Eco-92 – para citar alguns desses importantes marcos –, o ano de 2022 e os desafios colocados por essas crises clamam por mudanças transformativas. O relatório Stockholm+50: Unlocking a Better Future, publicado recentemente na celebração de meio século da conferência de Estocolmo, destaca dez mensagens centrais, que balizam a gravidade desse contexto atual de crises planetárias e humanas. Entre estas mensagens está o reconhecimento de que aqueles/as que menos contribuíram para as mudanças sem precedentes no clima e nos ecossistemas são, efetivamente, quem sofre seus piores impactos. Numa perspectiva mais crítica, o relatório inclui um chamamento para que nossa relação com a natureza seja radicalmente redefinida: de uma relação baseada na extração para uma baseada no cuidado. O documento acena, assim, para a urgência de uma ação transformadora imediata, para que a humanidade não precise de uma “Stockholm+100”.

Estas questões dialogam também com a agenda da saúde global, em particular com uma abordagem crítica que se debruça sobre as mudanças ambientais globais e suas conexões com processos decisórios, negligências, vulnerabilidades e seus múltiplos efeitos na vida cotidiana. Na perspectiva de elucidar as dimensões políticas, sociais, econômicas e culturais que estão na base das mudanças ambientais globais – ou dos problemas planetários trazidos pelo Antropoceno –, os estudos críticos da saúde global têm como desafio central ir além de visões dominantes e homogeneizadoras. Buscam, em particular, compreender como a produção contínua da desigualdade, a circulação do poder e a produção de relações de dominação e negligência produziram e continuam a produzir as crises sistêmicas que marcam o tempo social que vivemos.

Um dos esforços centrais dos estudos críticos da saúde global está justamente em questionar enquadramentos e concepções dominantes sobre sustentabilidade, uma das condições essenciais para a sobrevivência e bem-estar da humanidade, e fornecer uma reflexão crítica sobre suas implicações práticas. Enquanto campo de disputas políticas e diferentes modalidades de aplicação, onde o que está em jogo é com frequência uma acomodação para a continuidade do status quo vigente, a sustentabilidade, no seu enquadramento tecnocrático mais predominante, tem-se constituído enquanto um discurso ambíguo, fraco, conservador e pouco mobilizador. Integrado numa racionalidade de mercado neoliberal e ancorado numa perspectiva antropocêntrica que considera os ecossistemas naturais apenas valiosos desde que ajudem a satisfazer as necessidades humanas, esse enquadramento sobre sustentabilidade passa longe de reconhecer, efetivamente, os paradoxos e limites fundamentais de nossa atual organização socioeconômica e política.

Ao dialogar com outros campos de conhecimento e saberes que buscam constituir ou evidenciar perspectivas alternativas sobre modos de vida e relações entre humanos e mais-que-humanos, a agenda de estudos críticos da saúde global evoca o que identificamos como uma ‘compreensão desconfortável’ sobre o que constitui sustentabilidade (e suas práticas). A agenda crítica enfatiza a necessidade de transformações radicais na tentativa de frear ou interromper as ameaças ao Planeta Terra, aos seus ecossistemas e à vida (humana e mais-que-humana). Essas urgentes ações transformativas devem confluir com uma profunda revisão dos modelos de produção e consumo. Devem atender a diversidade, o respeito, a empatia, a justiça e a solidariedade como peças fundamentais desse mosaico transformativo.

Em tempos de efeitos ampliados de crises, e num momento em que revisitamos importantes marcos ambientais, reconhecendo ao mesmo tempo suas falhas e limitações, nos parece crucial reenquadrar a sustentabilidade, não apenas enquanto discurso ou utopia, mas sobretudo enquanto caminho concreto para contrariar a insustentabilidade dessa organização socioeconômica e política eminentemente destrutiva. Que este reenquadramento ecoe!


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