Estudantes de escolas públicas têm visão romanceada e utilitária dos oceanos

A escassa abordagem do tema nas escolas pode estar levando muitos estudantes a não estabelecerem relação direta entre seu cotidiano e o ambiente marinho e desconhecerem a complexidade do ecossistema aquático

 10/05/2024 - Publicado há 6 meses     Atualizado: 13/05/2024 às 13:37

Texto: Ivanir Ferreira

Arte: Beatriz Haddad*

A desconexão dos estudantes sobre o ambiente marinho pode estar relacionada ao escasso conteúdo da fauna e da flora marinha brasileira nos materiais didáticos - Foto: Renata Alitto

Embora o Brasil possua extensa área costeira (7.941 km) e o litoral paulista ser relativamente perto (cerca de 100 km) da capital, estudantes de escolas públicas do Estado de São Paulo revelaram se sentir distantes de questões relacionadas aos mares e aos oceanos. A maioria não estabelece relação direta entre seu cotidiano e o ambiente marinho e desconhece a complexidade do ecossistema aquático. A constatação é de uma pesquisa de pós-doutorado da Faculdade de Educação (FE) da USP que analisou a percepção de alunos da educação básica de escolas do Estado sobre ambientes marinhos e costeiros.
Segundo o estudo, estima-se que até 40% dos oceanos sejam afetados por atividades humanas, como poluição, turismo, tráfego marítimo, esgotamento da pesca e perda de habitats costeiros. “Conhecer e valorizar este ambiente é o primeiro passo para o processo de preservação e conservação dos recursos oceânicos e marinhos e de sua biodiversidade”, explica a bióloga e uma das autoras da pesquisa Renata Alitto.

“Há um verdadeiro vazio curricular em relação aos ambientes costeiros e oceânicos”, relata o orientador do estudo, Nélio Bizzo, professor e pesquisador da FE. Segundo ele, os ambientes costeiros foram os mais modificados nos últimos tempos pelo ser humano e cita como exemplo a invasão de espécies exóticas como o mexilhão, que veio acidentalmente da África. 

Nélio Bizzo - Foto: Acervo pessoal

Há um verdadeiro vazio curricular em relação aos ambientes costeiros e oceânicos"

Visão romanceada e utilitária

Um aspecto notado pela pesquisadora foi a prevalência de uma visão de mundo antropocêntrica e utilitária dos mares e oceanos, em que o meio ambiente era visto pelos estudantes como um conjunto de recursos naturais disponíveis para uso humano. Também foi observada uma percepção romanceada em relação à paz e à tranquilidade que o mar poderia transmitir. Agrupando as palavras mais citadas pelos alunos, cerca de 15% dos alunos fizeram comparações entre o mar, sentimentos de memórias e belezas naturais.A desconexão observada nos estudantes pode estar relacionada ao escasso conteúdo da fauna e da flora marinha brasileira nos materiais didáticos aos quais os alunos têm acesso nas escolas”, diz a pesquisadora.

Desde muito cedo, as crianças são bombardeadas com imagens e simbologias da fauna e flora estrangeira, como girafas, leões, ursos, pinguins, dentre outros. E nas escolas isso não é diferentes.

“Por uma questão de economia e de direitos autorais de imagens, os livros didáticos do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) do Ministério da Educação (MEC) acabam priorizando o conteúdo estrangeiro que pouco tem a ver com nossa realidade brasileira”, relata a pesquisadora.

O trabalho conduzido pela bióloga fez parte do projeto temático Programa BIOTA-FAPESP na educação básica: possibilidades de integração curricular, cujo objetivo é promover práticas de ensino por meio da educação ambiental. Os resultados da pesquisa feita com os alunos das duas escolas públicas no Estado de São Paulo foram publicados em artigo no Journal of Biological Education. Além da bióloga, os pesquisadores Grace Alves, Simone Martorano e Thiago Antunes-Souza, todos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), também são autores do trabalho.

Renata Alitto - Foto: Acervo pessoal

Questões feitas aos alunos

A pesquisa entrevistou 299 voluntários de uma escola municipal de ensino fundamental no bairro de Perus, São Paulo, e de uma escola estadual, do Taboão da Serra, município da região metropolitana de São Paulo. Todos estavam regularmente matriculados nos 7º, 8º e 9º anos e tinham idade entre 11 e 16 anos. A coleta de dados ocorreu pela plataforma Google Forms e continham três perguntas abertas: “Ao pensar em mares e oceanos, quais são as seis primeiras palavras que lhe vêm à cabeça? “Existe alguma relação entre o seu dia a dia e os mares e oceanos? Justificar”; e “O que você aprendeu na sua escola sobre mares e oceanos?”
Caranguejo Praia do Cabelo Gordo, CEBIMar-USP - Foto: Renata Alitto
Ouriço do mar, Paranaguá, Paraná - Foto: Maristela Bueno

Nuvens de palavras

As respostas foram avaliadas por um programa de análise textual  “Nuvem de Palavras”, que agrupa graficamente palavras e frases de acordo com a frequência com que elas aparecem nas respostas dadas pelos alunos.
Ilustração cedida pelo pesquisador

Ao pensar em mares e oceanos, quais foram as seis primeiras palavras que vinham a cabeça dos alunos

Das 13 palavras mais evocadas pelos alunos, apenas quatro se tratavam de componentes vivos do ecossistema marinho (elementos bióticos) como peixes, tubarões, baleias e animais marinhos. Entre estes, os peixes apareceram em primeiro lugar e com maior frequência (150), seguidos por tubarões (66), baleias (34) e animais marinhos (23). Entre os elementos abióticos (não vivos), as quatro palavras mais frequentes foram água (114), praia ( 63), barco ( 47) e ondas (39).
Para a bióloga, o fato de “peixe” ser a palavra mais evocada pelos alunos pode ser em consequência da utilização de livros didáticos que retratam essa palavra de forma mais recorrente. Um estudo da Universidade Federal do ABC (UFABC) mostra que “peixe” é o quarto ser vivo mais citado no acervo de livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didático, com 9,68% das 527 menções. Os outros três seres vivos mais citados foram mamíferos (25,43%), artrópodes (18,98%) e aves (15,94%). Grupos marinhos exclusivos, como cnidários, equinodermos e poríferos, são mencionados com menor frequência, com 3,8%, 2,09% e 0,19%, respectivamente.  
Em relação à segunda questão, “se existia relação entre o seu dia a dia e os mares e oceanos”, cerca de 61% dos estudantes não estabeleceram relação entre o cotidiano deles e os mares e oceanos. Entre os que responderam “sim” à segunda questão, a maioria dos estudantes (56%) mencionou a obtenção de alimentos e outros recursos como justificativa para exemplificar a relação entre mares e oceanos e o seu dia a dia.
Quanto à questão 3 que se propôs a identificar quais foram os conteúdos relacionados aos mares e oceanos aprendidos na escola, 31% (100 alunos) indicaram que estudaram sobre sua localização, tipos de oceanos, sua extensão, profundidade e composição química na escola e 19,2% (62 alunos) afirmam não ter tido contato com esse conteúdo nas aulas.

O que aprendeu na sua escola sobre mares e oceanos?​

Tabela cedida pelo pesquisador

Cultura oceânica

Segundo o professor Nélio Bizzo, existe um movimento internacional para que o tema dos oceanos seja mais conhecido pelos cidadãos. O objetivo é entender a importância e influência do oceano nas vidas humanas e também compreender o impacto das ações humanas no ambiente marinho. “Não se exige preservação do que não se conhece”, diz.
No Brasil, um projeto envolvendo as três universidades públicas (USP, Unicamp e Unesp) propõe implementar a cultura oceânica no currículo das escolas localizadas em cidades do litoral paulista. Segundo a bióloga Renata, são sete os princípios básicos dos oceanos que devem ser trabalhados nas escolas: “A Terra possui um oceano global e muito diverso”; “Os oceanos e a vida marinha têm forte ação na dinâmica da Terra”; “Os oceanos exercem uma influência importante no clima”; “Os oceanos permitem que a Terra seja habitável”; “Os oceanos sustentam uma imensa diversidade de vida e ecossistemas”; “Os oceanos e a humanidade estão fortemente interligados”; e “Há muito para descobrir e explorar nos oceanos”.
Neste contexto, a Baixada Santista, no litoral de São Paulo, foi a primeira cidade do mundo a instituir a cultura oceânica na rede pública de ensino através da criação da Lei da Cultura Oceânica, sancionada em 2021 fruto de uma parceria entre os poderes executivos e legislativos da cidade e a Unifesp.

Renata explica que são várias frentes para promover uma cultura oceânica nos currículos escolares brasileiros. Uma delas é disponibilizar materiais didáticos que possam ser utilizados na educação básica. Nesse sentido, os pesquisadores do projeto temático Biota-Fapesp desenvolveram diversos recursos que podem ser acessados de forma gratuita por meio do site Edevo Darwin, onde estão diversos materiais didáticos em diferentes áreas (biodiversidade marinha, evolução, animais perigosos e venenosos, entre outros), fotos da biodiversidade brasileira, biblioteca de mídia (vídeos e podcasts) e blog. Também está disponíveil o App Click Biota, que funciona como uma rede de divulgação de fotos e vídeos da biodiversidade brasileira.

Mais informações: Renata Alitto, email renataaalitto@gmail.com , professor Nélio Bizzo, bizzo@usp.br .

*Estagiário sob a supervisão de Moisés Dourado e Simone Gomes


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.