É preciso haver uma transformação estrutural para diminuir a violência contra as mulheres

As especialistas ouvidas pela Rádio USP são unânimes em afirmar que não bastam apenas a criação e a implementação de medidas punitivas para combater a violência contra a mulher, se estas não vierem acompanhadas de transformações sociais

 22/09/2023 - Publicado há 7 meses
Por
As próprias políticas públicas existentes para assegurar a proteção de vítimas de violência são consequência de uma sociedade violenta contra as mulheres – Foto: Rosy e Homburg por Pixabay
Logo da Rádio USP

Cerca de 50 mil mulheres sofreram algum tipo de violência a cada dia em 2022. Essa informação é da pesquisa Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil , encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), uma organização sem fins lucrativos (ONG) que coleta, anualmente, dados sobre os casos de violência no País. Desde 1985, com a fundação da Delegacia de Defesa da Mulher, o Brasil vem implementando cada vez mais políticas públicas e leis para proteção de vítimas de violência. Porém, se o País está equiparado com tantas ferramentas para amparar as vítimas, por que os dados de violência contra as mulheres continuam tão alto? 

O relatório 

Giane Silvestre – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

A pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apresenta números elevados porque diz respeito a uma pesquisa de vitimização. Nesse tipo de relatório, inúmeras mulheres são questionadas sobre terem sofrido algum tipo de violência, sem necessariamente terem realizado algum registro policial. Dessa forma, como explica Giane Silvestre, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, esses dados são mais fiéis à realidade. 

A pesquisa realizada pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública e pelo Monitor da Violência, por exemplo, elabora seus dados depois de coletar registros feitos nas delegacias. Como muitas vítimas de violência não denunciam seus agressores, os números registrados por esses indicadores e os números analisados pelo fórum não são os mesmos. 

Cenário brasileiro 

Heloisa Buarque de Almeida – Foto: Revista Espaço Aberto – USP

As próprias políticas públicas existentes para assegurar a proteção de vítimas de violência são consequência de uma sociedade violenta contra as mulheres, como explica Heloísa Buarque de Almeida, professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Essas medidas, por exemplo, surgem depois de lutas feministas que buscavam proteger vítimas de violência doméstica. “A gente precisa lembrar que qualquer uma dessas políticas já é resultado de uma situação de violência doméstica muito grave”, pontua Heloísa. 

A criação de novas leis e a implementação de políticas públicas não começam a surtir efeito assim que são aplicadas. Isso acontece, dentre alguns motivos, pela demora que a sociedade apresenta para reconhecê-las. Quando uma nova medida é implementada, às vezes as mulheres vítimas de violência conhecem apenas a medida anterior, e por isso demoram para recorrer. Além desse caso, Heloísa explica que leva tempo tanto para o aparato jurídico como o sistema policial, Judiciário e os operadores do Direito – como advogados, juízes e promotores públicos – incorporarem totalmente as novas propostas legislativas. 

Segundo Mariângela Gama Magalhães, professora da Faculdade de Direito (FD) da USP, as medidas protetivas e leis atuais surtem efeitos positivos na proteção de mulheres vítimas de violência. Entretanto, o problema está em sua fiscalização por parte do Estado, que não dispõe de aparatos disponíveis 24 horas por dia. 

No caso das delegacias de Polícia, Ministérios Públicos e guardas civis, a professora também acredita na sua eficiência; porém, esses dispositivos são insuficientes para atender à demanda das mulheres que estão em situação de perigo. “Ainda é importante frisar que não necessariamente esses canais são compostos de pessoas capacitadas para atender a esse tipo de denúncia. A violência contra a mulher tem características muito específicas e é diferente da violência urbana, e esses elementos demandam um tratamento diferenciado por parte das autoridades “, explica. 

Violência: um fenômeno multifacetado 

Historicamente, o Brasil se apresenta como um país violento e machista. Atualmente, os movimentos feministas conquistam cada vez mais espaço e visibilidade na sociedade; entretanto, também foi possível observar a ascensão de grupos conservadores nos últimos anos. “Esses movimentos defendem a desigualdade de gênero nas relações sociais, naturalizam a submissão das mulheres e a violência doméstica, como uma forma de dominação e superioridade masculina em relação às mulheres”, explica Giane. 

Durante o último governo, houve um corte sistemático do orçamento direcionado para políticas de enfrentamento de violência contra a mulher – Foto: Rosy e Homburg por Pixabay

 

Ainda segundo a pesquisadora, um dos motivos para a ascensão desse discurso foi a construção de um ambiente propício para essa temática no debate público. “Figuras de autoridade emanam opiniões misóginas, discursos misóginos, que inclusive estimulam violência de gênero. De fato, você cria um ambiente no debate público que propicia a ascensão de movimentos e discursos misóginos.” 

Durante o último governo, houve um corte sistemático do orçamento direcionado para políticas de enfrentamento de violência contra a mulher. No último ano do mandato de Jair Bolsonaro, como explica Giane, o corte foi da ordem de 90%. “Não se faz política pública sem verba, e esse corte inviabiliza qualquer tipo de ação.” Esse corte foi direcionado, sobretudo, à Casa da Mulher Brasileira, que são centros de atendimento às mulheres vítimas de violência. Além disso, durante esse período, também houve uma facilitação do acesso às armas de fogo, que é o instrumento mais utilizado nos casos de feminicídio, além de ser um mecanismo de ameaça constante. 

Possíveis soluções 

Não bastam apenas a criação e a implementação de medidas punitivas para combater a violência contra a mulher. As especialistas acreditam que é necessário, também, transformações sociais. Heloísa comenta que é preciso falar sobre gênero e desigualdade de classes nas escolas. “Muitas vezes, é na infância que os meninos aprendem a ser violentos […]. Quando alguém chega para um menino e fala ‘menino não chora’, a gente ensina o menino; ‘mas pode bater, não chora mais, bate e reage, vai lá bate no cara que bateu em você, bate de volta’. O que se está ensinando para os rapazes? Que eles não podem chorar, que eles não podem ser fracos, mas que eles estão autorizados a usar violência.” Dessa forma, é preciso desconstruir esse tipo de ensino e mostrar aos meninos como lidar com seus sentimentos sem agir de forma agressiva. 

Mariângela Gama de Magalhães Gomes – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Mariângela reconhece que esse tipo de mudança é trabalhosa e requer paciência. Entretanto, parece ser a única forma realmente efetiva de alcançar uma mudança nos valores da sociedade. “Me parece que o caminho mais efetivo é por meio tanto da educação formal, nas escolas, quanto na educação por meio da mídia, do contato social. […] Bater nas mesmas teclas, insistir em uma legislação punitiva, aumentar a pena, por exemplo, são respostas que aparentemente, no primeiro momento, parecem suficientes, mas a gente vai ver que isso não é suficiente. Precisamos mudar a base, é preciso mudar a educação das crianças.” 

Por fim, Giane acredita que, além de ser necessário promover uma educação igualitária em relação a gênero, também é preciso reestruturar as políticas em vigor, para que haja, pelo menos, uma diminuição dos casos de violência contra as mulheres. Desde a troca de governo, os canais de denúncia e o orçamento voltados para essas medidas governamentais estão passando por uma estruturação. Os efeitos dessa mudança, entretanto, são demorados e só poderão ser observados ano que vem, nas próximas pesquisas realizadas sobre o tema. 

Além disso, é preciso que haja um investimento em políticas de prevenção e acolhimento de mulheres vítimas de violência e uma maior fiscalização nas medidas já existentes. “É preciso haver um esforço  intersetorial, não apenas da área de política de proteção para as mulheres, mas também  de todos os operadores de segurança pública, para entender também a violência contra a mulher como um problema de política pública, como um problema de segurança pública a ser enfrentado, e não um problema doméstico como durante muito tempo se pensou no Brasil.”

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo


Jornal da USP no Ar 
Jornal da USP no Ar é uma parceria da Rádio USP com a Escola Politécnica e o Instituto de Estudos Avançados. No ar, pela Rede USP de Rádio, de segunda a sexta-feira: 1ª edição das 7h30 às 9h, com apresentação de Roxane Ré, e demais edições às 14h, 15h e às 16h45. Em Ribeirão Preto, a edição regional vai ao ar das 12 às 12h30, com apresentação de Mel Vieira e Ferraz Junior. Você pode sintonizar a Rádio USP em São Paulo FM 93.7, em Ribeirão Preto FM 107.9, pela internet em www.jornal.usp.br ou pelo aplicativo do Jornal da USP no celular. 


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.