Academia “versus” burocracia: uma experiência pessoal ilustrativa

Por Angelo Segrillo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 14/02/2022 - Publicado há 2 anos
Angelo Segrillo – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

 

Tenho escrito nas páginas do Jornal da USP artigos que procuram propor soluções para o problema da crescente burocratização que muitas vezes tira tempo que nós, professores universitários, deveríamos estar dedicando às nossas atividades-fim principais (ensino e pesquisa), para preenchimento de papelada, reuniões intermináveis etc. (vide, por exemplo, os artigos A cultura dos relatórios circunstanciados na USP de 14/03/2019 e Informatização e eficiência: um parecer sobre pareceres de 16/12/2021). Enfatizei, inclusive, que um dos aspectos mais insidiosos é que muitas vezes estamos “normalizando” tal situação a ponto de valorizarmos como “sucesso” a realização de mais e mais tarefas burocráticas muitas vezes em prejuízo do ensino e da pesquisa.

Há pouco tempo senti na carne esta inversão de valores e resolvi expor este caso para a apreciação de todos, pois pode servir de alerta contra as tendências burocratizantes perigosas descritas acima (e isso não apenas aqui na USP, mas em outras universidades também).

Há pouco tempo nós, professores da USP, passamos pela chamada “progressão horizontal” em que se pode pedir progressão dentro de sua categoria (professor doutor, professor associado). A novidade desta vez é que se instituiu a possibilidade de, “em casos de desempenho excepcional”, o professor saltar um nível e “andar duas casas” na progressão. Por exemplo, eu solicitei passar de “professor associado 1” diretamente para “professor associado 3” sem passar pelo estágio de “professor associado 2”. Eu estava certo da aprovação do meu pedido, pois meu perfil se encaixava perfeitamente dentro do conceito de “desempenho excepcional” naquele quinquênio.

Explico aqui por que eu estava tão certo de me encaixar no “desempenho excepcional”. Eu sou de uma área (História da Rússia) em que quase não há especialistas no Brasil. Historiadores trabalham com fontes primárias nas línguas originais. Devido às dificuldades com a língua russa (distância geográfica das fontes etc.), ao que eu saiba, ainda sou o único historiador professor universitário brasileiro em atividade a trabalhar regularmente há anos com as fontes primárias russas na língua original (há pessoas que dominam russo no Brasil, mas a maioria está na área de Letras, não de História). Ou seja, sou considerado por muitos o maior especialista em história da Rússia no Brasil.

Mas não é apenas o caso de um especialista em área pouco desenvolvida no Brasil. Exatamente o quinquênio da avaliação da progressão horizontal foi o período em que meu trabalho estourou em nível internacional também. Nele realizei pelo menos quatro trabalhos que foram pioneiros em nível mundial: a primeira tradução completa do russo para o inglês do original de um dos maiores documentos históricos russos, a Tabela de Patentes de 1722 de Pedro, o Grande; o livro que é considerado a mais detalhada obra ocidental sobre a formação das três grandes correntes ideológicas identitárias russas (ocidentalismo, eslavofilismo, eurasioanismo) tomadas em conjunto; a primeira biografia stricto sensu (i.e., baseada em fontes primárias na língua original) de Karl Marx por autor latino-americano; a primeira condensação em língua inglesa dos três volumes de O Capital de Karl Marx em um só volume. Isso fora os outros trabalhos no período que foram pioneiros no Brasil em língua portuguesa (a tradução completa da Tabela de Patentes de Pedro, o Grande, também pela primeira vez para a língua portuguesa; a tradução completa e comentário do último grande romance russo do século 19 ainda não traduzido para o português etc.).

Este, por qualquer métrica, é um “desempenho excepcional” no período. Basta dizer que há professores titulares (acima do meu pretendido “associado 3”) que não são nem os maiores especialistas em suas áreas no Brasil e nem fizeram tantos trabalhos pioneiros em nível mundial em período tão curto (o que não é demérito nenhum, pois esse tipo de desempenho é raro e geralmente só possível em campos pouco explorados no Brasil, como o meu).

De qualquer jeito, eu tinha certeza de que era exatamente este perfil de alcance acadêmico destacado (inclusive em nível internacional) que a USP queria incentivar e premiar com a possibilidade excepcional de “pular um estágio” na progressão horizontal.

Qual não foi minha surpresa, ao ver meu pedido negado. E o pior foi a justificativa! O parecerista não negou o alcance excepcional de minhas obras [pesquisa] nem criticou nenhum aspecto das minhas aulas [ensino]. A única coisa que concretamente e corretamente apontou para me negar o provimento foi debilidade no aspecto de “captação de recursos”! Apesar de ter tido financiamento da Fapesp (para trazer professor visitante), eu não tinha tido nenhum grande projeto que tenha captado recursos em grande volume para a USP! Ou seja, todo aquele excepcional desempenho em termos de obras publicadas etc. foi deixado de lado em prol de um aspecto meramente burocrático, de “captação de recursos” (como se, em vez de ser professor, eu fosse alguma espécie de fund-raiser!).

É essa inversão de valores, de se estar deixando de lado a centralidade de nossas atividades principais de ensino e pesquisa em prol de atividades burocráticas, que venho apontando em meus artigos. E agora senti amargamente na carne. Pior! Ouvi outros professores reclamando também de desvalorização do trabalho acadêmico em prol de detalhes burocráticos no mesmo processo. Uma inversão de valores!

[Em nota de rodapé, preciso dizer que o parecerista, além do aspecto de “captação de recursos”, citou também como meu ponto fraco a “internacionalização de atividades”. Mas aí já é erro factual e, na pressa de analisarem centenas de processos, o parecerista certamente não viu todos os detalhes da minha atividade, pois eu não trabalho com história do Brasil e sim história internacional, sou coordenador do Laboratório de Estudos da Ásia (LEA) da USP e, por ali, agimos o tempo todo em intercâmbio com estrangeiros. Para as palestras do LEA, já vieram professores de universidades da Rússia, China, EUA, França, Inglaterra, Japão etc. No LEA publicamos neste último quinquênio oito livros em inglês que nos fazem referência internacional em várias áreas. Ou seja, eu e o LEA somos uma das instâncias mais internacionalizadas da USP! Neste aspecto, o parecer teve simplesmente erro factual crasso].

O meu caso individual no processo de progressão horizontal pode ter sido resultado de idiossincrasias do parecerista individual que o julgou (entre as centenas de casos a julgar), mas o fato de que ele pode desconsiderar todo um trabalho acadêmico claramente excepcional justificando com pequenas tecnicalidades burocráticas é sinal de que temos um problema mais generalizado aqui. Tenho certeza que expondo o meu caso estou dando voz também a outros professores que se sentem desconfortáveis frente a este problema da burocratização crescente (por vezes, como vimos, até em detrimento da parte acadêmica).

Acredito que o primeiro passo é tomarmos consciência clara do problema. Nossas principais atividades como professores são pesquisa e ensino (lato sensu, incluindo orientação, extensão etc.). A parte burocrático-administrativa deve ser vista como um (importante) meio para essas atividades-fim, mas não como um fim em si mesma (e, principalmente, nunca um fim que deprecie ou atrapalhe aquelas atividades-fim).


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.