Informatização e eficiência: um parecer sobre pareceres

Por Angelo Segrillo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 16/12/2021 - Publicado há 2 anos
Angelo Segrillo, professor da FFLCH – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

 

 

Há algum tempo venho escrevendo, nas páginas do Jornal da USP, artigos propondo pequenas e práticas maneiras de tornarmos nossa gigantesca e querida USP menos burocrática de modo que os professores gastem o menor tempo possível com papelada e o máximo possível em ensino e pesquisa. Em um deles (A cultura dos relatórios “circunstanciados” na USP, de 14/03/2019), apresentei as bases metodológicas de por que isso é importante.

Nos últimos tempos tenho sentido um movimento que, ao lado de aspectos positivos, pode trazer colateralmente uma forma de burocratização insidiosa. Talvez devamos investigar esta questão para garantir os aspectos positivos e evitar que junto venham os negativos.

Em várias áreas, a USP está procurando informatizar os seus processos e fazer com que tudo seja feito através de fluxo puramente digital. Isso é excelente, pois o fluxo digital agiliza, poupa o papel usado em processos físicos (e até ajuda a evitar corrupção e favoritismos, como vimos quando diminuíram, pelo menos inicialmente, as fraudes em licitações governamentais de remédios em vários Estados ao ser adotado o pregão eletrônico). Entretanto, dentro do princípio acima de que a burocracia não é um fim em si e sim um meio (na verdade, um “mal necessário” que deve ser mantido tão mínimo quanto possível) para as nossas atividades-fim (ensino e pesquisa), é importante que a informatização não seja um meio para facilitar o trabalho da administração apenas e sim para liberar os professores para suas duas principais atividades produtivas acima mencionadas.

Primeiro de tudo, a informatização dos processos deve ser feita de modo que os sites e instrumentos digitais a serem utilizados pelos professores sejam criados da maneira fool-proof (“à prova de tolos”, como diz a gíria digital norte-americana). Devem ser facilmente inteligíveis e estruturados de maneira que as tarefas sejam realizadas pelos professores de maneira ágil. Quem não se deparou com sites que não são user-friendly e que exigem muito tempo para dominar e processar?

Além disso, há o problema extra que mencionei acima. Temos que ter cuidado para que o processo digital não seja meramente uma maneira de facilitar o trabalho da própria burocracia (administração) e sim de facilitar ao professor se dedicar ao trabalho produtivo de ensino e pesquisa.

Passei há pouco tempo por experiência que mostra como a digitalização, se não for direcionada da maneira acima, pode gerar até mais burocratização para os professores. Participo da Comissão de Cultura e Extensão da minha unidade. Por incrível que pareça, os cursos de extensão na USP tiveram um imenso salto durante a pandemia, pois passaram a ser ministrados on-line, o que fez nosso público passar de restrito aos moradores de São Paulo para público nacional (e mesmo internacional) aos milhares. Basta dizer que, neste ano, o número de estudantes de extensão na USP ultrapassou o de estudantes de graduação regular! Ou seja, estamos com uma altíssima taxa de eficiência com um pequeno corpo de professores coordenadores e funcionários da Extensão gerenciando um imenso número de estudantes de extensão por todo o Brasil e até fora dele.

Pois bem, este “time que está ganhando” se defrontou há pouco com a perspectiva de um entrave burocrático do tipo que descrevi acima. Dentro do processo de digitalização da USP se aventa a perspectiva de que os pareceres sobre cada curso de extensão deverão ser dados não da maneira “manual” atual e sim com um parecer eletrônico individual dado por um professor para cada uma das (atualmente) centenas de cursos. Fizemos uma simulação como seria isso feito por este novo método e o tempo que cada professor levou para fazer o parecer individual foi muito maior do que o método que usamos atualmente. Como é feito atualmente no nosso sistema “manual”? A nossa pequena Comissão recebe as propostas das dezenas de cursos de extensão e distribui em partes iguais aos professores da Comissão; os professores em casa, antes de nossa reunião mensal, dão uma verificada se os projetos dos cursos a eles alocados estão OK (a verificação é mental e não exige preenchimento de formulários) e, na reunião mensal da Comissão, repassamos coletivamente cada curso e cada professor que o examinou vai dizendo se o curso tem problemas ou pode ser aprovado. Em caso de dúvidas sobre algum curso, discutimos a dúvida entre nós e tomamos uma decisão coletiva.

Como eu disse, este é um “time que está ganhando”: aumentamos tremendamente o número de cursos (agora on-line) com mínima perda de tempo burocrática com papelada para podermos criar centenas de cursos que beneficiam a sociedade fora da USP como um todo. É um trabalho altamente gratificante como era e é. Agora, o pensamento de deixarmos de fazer um trabalho eficiente e rápido para alcançar o resultado atual x e passarmos a gastar muito mais tempo burocrático com preenchimento de pareceres on-line individuais para cada curso para alcançar o mesmo resultado x é desestimulante. Atualmente a análise de cada curso por um professor não envolve a redação de “parecer” em sua fase inicial. Aprovamos os cursos “oralmente”, em discussão coletiva, e depois os cursos são encaminhados, aprovados, às instâncias superiores. Para que criar esta instância extra inicial de pareceres individuais on-line para cada curso por cada professor? Por que não simplesmente aceitar a atual aprovação coletiva no “fim da linha” (esta aprovação coletiva sim, sendo encaminhada digitalmente)?

Este é um exemplo do que eu disse de que a digitalização deve vir não como um fim em si (meramente para facilitar a burocracia da administração) mas para também sempre diminuir o tempo que os professores gastam com burocracia para que sobre mais tempo a eles para se dedicarem a suas atividades-fim produtivas de ensino e pesquisa.

O parágrafo acima deve servir como uma “regra de ouro” desse processo de digitalização em curso na USP. Parte do problema se deve ao fato de que por vezes o processo de digitalização é realizado apenas pela área técnica, pensando em termos administrativos, e sem consulta ou trabalho conjunto com o usuário final (no caso, os professores) para se assegurar da parte final da minha “regra de ouro” acima. Em cada caso de digitalização deve ser feita uma consulta e um ensaio prévio em conjunto com os usuários finais para que a parte final da “regra de ouro” seja realizada. Sem ela, a digitalização será contraproducente.

Um exemplo concreto para ilustrar o que estou dizendo. Professores mais antigos vão se lembrar que outrora as revistas acadêmicas nos enviavam pedidos de pareceres sobre artigos em consideração para publicação e nós redigíamos um parecer em um arquivo word qualquer e enviávamos de volta, sem maiores delongas, tal resposta às revistas. De alguns anos para cá, as revistas digitalizaram todo o fluxo de emissão de pareceres, por vezes de maneira pouco user-friendly, exigindo que os professores se cadastrem em plataforma digital específica, frequentemente tendo problemas operacionais etc. Ou seja, emitir um parecer em fluxo digital ficou mais complexo, exigindo mais perda de tempo. Resultado: tenho recusado emitir pareceres quando os sites começam a exigir muitas operações extras.

Estou “soando este alarme”, pois além desses pareceres que “dou” (não necessariamente sempre “redijo”, observem) na Comissão de Extensão (e para revistas acadêmicas), “dou” (atualmente redijo de forma rápida e simplificada em meros arquivos word) dezenas de pareceres para diversos departamentos. Se burocratizarmos estas dezenas de pareceres que “damos” em nosso dia a dia, aprofundaremos ainda mais nosso sério problema atual de que os professores estão dedicando cada vez mais tempo a atividades burocráticas e ficando com menos tempo para ensino e pesquisa (em lato sensu, é claro, incluindo extensão, orientação etc.)

Time is money. Análise de custo-benefício é necessária nesses processos de digitalização, mas o benefício não pode ser visto puramente como o benefício para a própria burocracia ou administração, e sim em minimizar o tempo que os professores gastam em processos burocráticos para maximizar o tempo que eles têm para suas atividades-fim produtivas, que são o ensino e a pesquisa.


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