Vamos lembrar Pelão, aquele que lembrou a música do povo

Analisado por Tárik de Souza, livro paga a dívida que a música popular do Brasil tem com um de seus mais importantes produtores

 23/04/2021 - Publicado há 3 anos
O produtor musical Pelão ao lado do compositor Cartola – Foto: Divulgação/Garoa Livros

 

O início de 2021 teve uma notícia boa. E foi o lançamento do livro Pelão – A Revolução pela Música, escrito por Celso de Campos Jr., pela Editora Garoa Livros. O autor é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, e historiador pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Sua obra traz à luz a figura e os trabalhos do produtor musical João Carlos Botezelli, conhecido no meio cultural como Pelão.

O jornalista e historiador Celso de Campos Jr., autor de Pelão – A Revolução pela Música – Foto: Reprodução/YouTube

Pelão, que passou pela antiga Escola Prática de Agricultura, hoje um dos campi da USP, em Pirassununga, foi desembocar na música mesmo sem formação na área. Se esse requisito fosse um impedimento, não teríamos, hoje, alguns dos mais antológicos discos da música brasileira. Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa são apenas os primeiros nomes da lista preciosa de suas produções.

Por falar em antológico, temos um representante do termo, autor do texto logo abaixo. Trata-se de Tárik de Souza, jornalista e crítico musical, autor de colunas, livros e análises nos mais diversos meios. Desde o alternativo jornal Movimento até os grandes da imprensa, como o Jornal do Brasil e a Folha de São Paulo, ele vem mostrando a música brasileira pelos ângulos perspicazes de sua escuta multifacetada. No livro de Celso de Campos Jr., estão presentes algumas de suas observações sobre os discos produzidos por Pelão. E, agora, seu texto é sobre a própria obra aqui em questão.

É uma resenha-artigo-relato que revela a importância desse lançamento literário e, sobretudo, do resgate de um dos principais produtores musicais de nossa história. Os escritos de Tárik acabaram ficando inéditos até agora. E o Jornal da USP tem a satisfação de publicá-los pela primeira vez.

 

A saga do intrépido Pelão, o artesão da revolução pela música

Por Tárik de Souza

O jornalista Tárik de Souza – Foto: Reprodução/YouTube

No ofício de produtor musical, que muitos abraçam apenas para emplacar alguns hits e descolar uma boa grana, o jovem João Carlos Botezelli, o Pelão, tinha pretensões um pouquinho mais elevadas. “Como a gente vai fazer a revolução no Brasil?”, meditava, entre tucunarés, pintados e corvinas, numa pescaria distraída no Araguaia. Nascido em São José do Rio Preto (SP) e criado na zona sul paulistana, ele ganhou a inusitada alcunha ao ser acolhido como “Pele fina” pelos veteranos da Escola Prática de Agricultura, em Pirassununga (SP). Eles logo promoveram o aumentativo do apelido, ao constatar que Pelão era casca grossa diante das adversidades. E foi com essa resiliência que ele trocou uma possível prosperidade ruralista pela cultura. Após uma breve passagem pela política no Movimento Popular de Março, ele engajou-se nos bastidores da música. De faz-tudo na orquestra do versátil maestro italiano, então radicado em São Paulo, Enrico Simonetti à produção de programas de TV, de Flávio Cavalcanti ao requentado Almoço com as Estrelas, sempre com cachês atrasados, ele foi parar no burocrático departamento de publicidade e promoções da gravadora RCA. Lá, viu recusada pelo diretor (“já temos o grupo Pholhas”) a fita do conjunto do filho do jornalista e poeta João Apolinário, uns certos Secos & Molhados, que foram vender mais de 800 mil cópias na concorrente Continental. Pelão pediu as contas quando seu projeto aprovado, o primeiro disco solo da cantora Cristina Buarque, foi entregue a outro produtor.

E foi bater na Odeon, no Rio, oferecendo ao produtor Milton Miranda, de improviso, um disco diferente de Nelson Cavaquinho (“o dos bares, o verdadeiro, ele e o violão vertical e o toque de dois dedos, com o suor dele”), que imaginou na hora. Nascia a obra-prima que elevava Nelson ao merecido patamar de gênio musical, incluindo um inédito solo ao cavaquinho de seu nome artístico. O disco ainda desvelava seu verdadeiro parceiro principal, o também fabuloso Guilherme de Brito. Era o início da saga do produtor exigente mas afetivo, corpulento, de vozeirão tonitroante, o “Viking da Mooca”, segundo o semanário Pasquim, boêmio profissional, que inventou, com os dedos em arco, um modo original de empunhar o copo de chope. É o personagem irresistível e militante cultural infatigável, que salta de Pelão – A Revolução pela Música, do sagaz e detalhista Celso de Campos Jr., jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero e em História pela USP, autor, entre outros títulos, de Adoniran – Uma Biografia, As Jóias do Rei Pelé, 100 Senna e 1942 – O Palestra Vai à Guerra.

Pelão ao lado de Nelson Cavaquinho – Foto: Divulgação/Garoa Livros

 

Pelão emendou o êxito inicial com outro resgate cultural, o do compositor paulista Adoniran Barbosa, que até 1973 ainda não tinha um LP solo, e sequer tinha gravado, sob a voz – tão arenosa quanto a de Nelson – seus megaclássicos Saudosa Maloca, Samba do Arnesto e Trem das Onze. Sempre cercado por um elenco de grandes músicos, Pelão criou a moldura certa para destacar a arte maior do cronista da alma paulistana. Deu tão certo que a gravadora pediu bis, e logo sairia um segundo disco, sem o entrave da censura que proibiu o Samba do Arnesto no primeiro. Toque de mestre, Pelão requisitou a contracapa ao escritor, ensaísta e professor Antonio Candido, que perfilou o artista: “Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto insinuante de sua antivoz rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre a permanência do laço de borboleta de outros tempos, ele é a voz da cidade”.

O projeto de Pelão estava em andamento. “A verdadeira revolução só chegará quando a voz do povo for ouvida e reproduzida em sua essência”, pregava. E, no próximo capítulo, ele quedou-se de joelhos no bar Jogral, em São Paulo, implorando para gravar um disco de Cartola ao sócio da gravadora Marcus Pereira, Aluizio Falcão. Aos 65 anos, o baluarte mangueirense ainda não tinha um disco solo. Acantonado por ases instrumentais como Dino, Meira, Canhoto, Copinha, Raul de Barros, Marçal, Luna, Jorginho, Gilberto D’Ávila e Wilson Canegal, o insuspeito intérprete refinado entrou no estúdio para enfileirar suas obras-primas irretocáveis, com ou sem parceiros: O Sol Nascerá, Alvorada, Acontece, Alegria, Quem Me Vê Sorrindo, Disfarça e Chora, Sim, Corra e Olhe o Céu, Tive Sim. Marcus Pereira, dono do selo com seu nome, no entanto, reprovou como “latido de cachorro” a cuíca de Marçal numa das faixas, e queria vetar o lançamento. O projeto foi salvo porque Pelão levou a fita ao crítico Maurício Kubrusly, que decretou, no Jornal da Tarde, ser esse “o disco do ano”. No que foi seguido por praticamente toda a imprensa musical, quando afinal ele foi lançado. Frequentou até parada de sucessos, e trouxe para Cartola uma audiência jovem e interessada. “Prestam atenção ao mínimo detalhe das minhas letras. E às vezes me fazem perguntas que nem sei responder”, confessou à repórter Martha Zanetti, do Jornal de Música.

Na corrida para reparar injustiças históricas dos pilares da MPB, Pelão, infelizmente, chegou tarde ao coautor do primeiro samba oficial, Pelo Telefone, Ernesto dos Santos, o Donga. O estúdio estava programado para gravá-lo quando ele faleceu, aos 84 anos. Mas a homenagem saiu assim mesmo, com um grande elenco instrumental (Joel Nascimento, Abel Ferreira, Dino, Meira, Altamiro Carrilho, Jorginho do Pandeiro, Marçal, Elizeu), um desempenho antológico de Elizeth Cardoso em Canção das Infelizes e mais as estreantes Gisa (irmã de João) Nogueira (Quando Uma Estrela Sorri) e Lecy Brandão (Seu Mané Luiz). Outro luminar mangueirense, Carlos Cachaça, parceiro de Cartola, foi tirado do ineditismo num memorável disco solo, aos 73 anos, que rendeu a Pelão o Prêmio Villa Lobos de melhor diretor artístico de 1977. Seu leque estético estava cada vez mais amplo. Do então novato sambista paulistano Carlinhos Vergueiro aos discos das escolas de samba cariocas Mangueira, Salgueiro, Portela e Império Serrano e à dupla de cururu Nhô Serra e Pedro Chiquito, em mais uma contracapa antológica do mestre Antonio Candido. E ainda, música barroca mineira pela Orquestra Lira Sanjuanense, de São João del Rey (Minas 1717-1977 Região de Rio das Mortes), um encontro inédito do icônico casal de cantores da era do rádio Jorge Goulart e Nora Nei (Jubileu de Prata) e a cantata umbandista Maria Jesus dos Anjos, que lhe rendeu a honrosa amizade do autor, o enciclopédico Radamés Gnattali. “Queria que ele fosse meu pai e ele acabou se transformando em meu filho”, ironiza ele, citando diversas peripécias com o maestro, incluindo uma inesperada parceria arrancada numa manhã de ressaca.

Capa do livro de Celso de Campos Jr. sobre Pelão – Foto: Reprodução

Em sua infatigável missão de confeccionar (“trabalho o disco como um artesão, e sofro do começo ao fim com sua realização”) discos definitivos para sumidades negligenciadas, Pelão entronizou, aos 55 anos, o acurado mangueirense Nelson Sargento em Sonho de Um Sambista. E tirou da sombra do parceiro Nelson Cavaquinho o acre lírico Guilherme de Brito, aos 57, num álbum que levou o nome do compositor, ambos para o selo Eldorado, para onde se transferira Aluizio Falcão. Admirador incondicional do pernambucano Quinteto Violado, tornou-se amigo pessoal do baixista e compositor Toinho Alves, com quem produziu um disco do grupo de maracatu Nação Pernambuco. Em 1983, realizou com o quinteto Coisas Que Lua Canta, a bordo de um repertório de Luiz Gonzaga selecionado a bisturi. É de Toinho a melhor definição para o estilo seco do produtor, pouco dado a incentivos durante o trabalho. “Se Pelão não reclamar de nada, não fizer nenhum comentário, considere o maior elogio”, sentenciou.

A despeito da carapaça protetora do esteta, que comandava o estúdio sem saber música, ele sempre foi aquele amigo incondicional, a quem se pode abrir o peito. Diagnosticado com o vírus da Aids e prisioneiro da cocaína, o superlativo violonista Raphael Rabello precisava com urgência de US$ 5 mil, e apelou ao amigo de dez anos de convivência, mas ainda nenhuma parceria profissional. Este sacou do baú a ideia que tinha há tempos de homenagear o violonista Dilermando Reis (1916-1977), um clássico popular de extensa discografia, então esquecido. Pelo módico adiantamento da gravadora RGE, que cobria as necessidades urgentes do amigo, nascia mais um disco antológico, Relendo Dilermando Reis, em que Pelão até assumiu a mesa de som, já que o violonista não se entendia com o técnico da gravação. O jornalista combativo e bandolinista Luís Nassif cravou na contracapa: “Este disco permite a um só tempo comprovar a maturidade de um dos mais completos violonistas da atualidade e a justa reavaliação da extraordinária importância de Dilermando Reis para o violão e o choro brasileiros”. Seria o último lançamento de Raphael, que morreu um ano depois, em 1995, aos tenros 32 anos de idade.

Mas ele abriu caminho para uma série na gravadora então comandada por Rodrigues Pozo, com quem Pelão já havia trabalhado na Continental. Relendo Garoto sairia das cordas do multi-instrumentista Zé Menezes, que tinha sido parceiro do próprio homenageado, Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, nas décadas de 1940 e 1950. Já Relendo Waldir Azevedo ficou a cargo do pesquisador e especialista em cavaquinho Henrique Cazes. E Relendo Jacob do Bandolim foi dedilhado por seu virtuose discípulo Joel Nascimento. Como sobrava dinheiro na gravadora com o sucesso do grupo de pagode Raça Negra, Pelão ainda emendou com a reciclagem de outro esquecido, em O Samba Bem Humorado de Nadinho da Ilha. E teve que retribuir as gentilezas, produzindo um disco comemorativo do grupo Demônios da Garoa (55 Anos de Garoa), de quem não gostava, mas adornou com uma inédita de Aldir Blanc e Cristóvão Bastos, Dasdô e o Gato.

Também contrariado, já que prefere o papel autônomo de caçador de talentos (“Quero eu mesmo mirar e atirar”), condescendeu em ouvir uma fita do filho da prima Cacilda Mehmari, cantora, pianista e acordeonista. “Parecia o Chick Corea”, espantou-se com o talento do ainda menino pianista André Mehmari, que venceria o Prêmio Visa de MPB Instrumental em 1998. Só oito anos depois, ele produziria um disco dele – e à altura da originalidade que descobriu no longínquo parente. Três no Samba unia o piano poliglota de Mehmari, o surdo de Antenor Marques Filho, o Gordinho, e a voz de Eliane Faria, filha de Paulinho da Viola. Depois de trabalhar uma década na TV Globo, o produtor enfileirou discos-brindes que lhe permitiam outras aventuras e verbas menos restritas. Além da série Memória, com clássicos da MPB, acrescidos de depoimentos, preparou um coletivo no centenário de Villa Lobos. A ideia era devolver as obras do erudito ao povo, em cuja cultura ele havia se baseado. Escalou mais uma armada de cobras, de João de Aquino, Raphael Rabello e Mauricio Carrilho (violões) a Déo Rian (bandolim), Zé Gomes (rabeca), Neco (cavaquinho) e Toinho Alves (baixo), e destinou ao bacharel em Física e Música pela Universidade de Brasília (UnB) Roberto Corrêa a fundamental viola de O Trenzinho do Caipira, incontornável êxito popular de Villa.

O produtor caçador acertara de novo na mira. E nascia, na sequência, Viola Caipira – Um Pequeno Concerto, de Corrêa, produzido por Pelão, com composições do músico e clássicos do ramo, alguns tocados na rara viola de cocho. Outro projeto da dupla reuniu o violeiro cerzindo poemas de Drummond, declamados pelo ator Lima Duarte. Corrêa também participaria do disco-brinde que homenageava os 80 anos do gigantesco compositor italiano de trilha de filmes, ídolo do ítalo-paulista Pelão: Nino Rota por Solistas Brasileiros. Além do violeiro, foram convocados participantes do tributo a Villa Lobos, e mais Theo de Barros e Guinga (violões), Laércio de Freitas (piano), Chiquinho do Acordeon e Zé Nogueira (sax soprano). Outros dois memoráveis projetos uniriam Pelão e Roberto Corrêa. Voz e Viola, de 1996, era o primeiro em que a monumental Inezita Barroso encarava todas as faixas acompanhada somente pelo instrumento básico da música caipira a que ela se dedicou, junto com a garimpagem folclórica. No seguinte, Caipira de Fato, contemplado com o Prêmio Sharp de 1997, repetiam-se os solistas, mas o conceito era a cena do caipira de São Paulo e seus arredores. Parceiro de todos esses encontros, Roberto Corrêa tem uma definição para tantos acertos do produtor, que empenhou-se em promover uma revolução no País através de seu trabalho cultural:

“Além de amor, Pelão tem uma habilidade com artistas, como foi com o Cartola: sabe conversar para realizar seu sonho, mas também o sonho do artista, e transforma isso em trabalho gravado”. E faz história.

Tárik de Souza é jornalista e crítico de música


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