Movimento mundial de realocação de cadeias produtivas busca economias seguras

Segundo especialistas, o Brasil só vai se mostrar atrativo para novos investimentos a partir do momento em que se ajustar internamente para fazer frente aos desafios de uma economia altamente globalizada

 18/10/2023 - Publicado há 6 meses
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Automação industrial brasileira, em suas diversas tecnologias como a inteligência artificial, robótica, internet das coisas e computação em nuvem, está, pelo menos, 15 anos defasada em relação aos principais concorrentes internacionais – Foto: west468/Pixabay

 

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Entre os inúmeros efeitos colaterais da pandemia de covid-19, pode-se dizer que um dos mais importantes começa a se perceber nas Cadeias Globais de Valor (CGVs) que representam, talvez, o mais importante fenômeno no comércio internacional verificado nos últimos 20 anos, segundo especialistas. As interrupções nas cadeias de suprimentos e aumento dos custos logísticos, impactadas pelos lockouts impostos pela pandemia em diversos países mundo afora, trazem uma importante mudança de rota na economia mundial altamente globalizada. E as chances de o Brasil surfar nessa nova onda vão depender dos ajustes que o País precisa fazer internamente. 

Sérgio Kannebley Júnior – Foto: Arquivo Pessoal

O professor Sérgio Kannebley Júnior, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da USP, cita que a cadeia de valor de um bem é composta de um conjunto de atividades inter-relacionadas no ciclo produtivo, que vai desde a pesquisa e desenvolvimento, design e fabricação, até a fase de distribuição final e outros serviços pós-vendas. “Tudo isso envolve a criação de valor do produto final. Quando essas etapas são fragmentadas em diversos países, tendo cada país uma responsabilidade diferente na sua execução, temos aí uma CGV.” 

Segundo o professor, o nearshoring, então, “seria de certa forma um movimento de desfragmentação dessa cadeia, melhor readequando-a ao conjunto de interesses dos controladores do processo produtivo, que envolve alguns sacrifícios em termos de eficiência econômica em troca de um maior controle sobre o processo produtivo e redução da dependência dos diversos atores responsáveis pela execução das atividades produtivas”. É uma mudança de rumo enorme ao se constatar que, durante anos, essas cadeias produtivas se alimentaram de mão de obra barata, baixos impostos, facilidades fiscais, entre outros atrativos oferecidos por países como China e Índia, por exemplo, e “não foram apenas vantagens em custos, houve também questões como o desmembramento das atividades de pesquisa e desenvolvimento e outras vantagens de logística”, ressalta.  

Sandro Renato Maskio – Foto: Arquivo Pessoal

Essa estratégia de encurtamento das cadeias de produção faz despontar algumas economias que têm um mínimo de solidez, como o México, quase uma unanimidade como sendo a “bola da vez”, naturalmente beneficiada pela fronteira norte-americana. O Brasil também surge nesse radar e pode tirar vantagens, mas é preciso antes fazer uma longa e árdua lição de casa.  

“É fundamental recuperar a capacidade competitiva da economia brasileira e de atração de investimentos produtivos”, analisa o economista Sandro Renato Maskio, pós-doutorando da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA-RP) da USP em Ribeirão Preto. “Para isso, é preciso melhorar o ambiente macroeconômico, do ponto de vista de seu nível de certezas, de estabilidade, de previsibilidade aliada às reformas microeconômicas que tenham como grande objetivo reduzir custos relativos e custos comparativos para ampliar a produtividade”, afirma. Para Maskio, o grande calcanhar de Aquiles da economia brasileira é saber como melhorar o padrão de competitividade e de produtividade.

Atraso tecnológico

O professor Kannebley lembra outras questões como a defasagem da estrutura industrial. “Toda a indústria 4.0, a automação industrial em suas diversas tecnologias avançadas como a inteligência artificial, robótica, internet das coisas e computação em nuvem, tem ficado para trás em relação a outros países.” Em artigo publicado em 2018 no portal www.ung.br, intitulado O Brasil e o Atraso no Desenvolvimento Digital, o doutor em Direito Janguiê Diniz diz que, “no Brasil, o investimento das empresas está bem abaixo do investimento tecnológico da média industrial mundial. Por aqui, apenas 21% dos empresários afirmam que vão investir cerca de 6% de seus recursos em inovação tecnológica. Enquanto isso, no mundo, a média é de 43%”. Para ele, a culpa por essa falta de investimento é justificável: “São todos os entraves já conhecidos pelos brasileiros, seja por falta de infraestrutura, falta de política de inovação, crise ética e econômica ainda sem perspectiva de fim, etc. Há quem aponte para 15 anos a defasagem do Brasil em relação a países como Itália, Canadá e México nas políticas públicas para adoção da indústria 4.0.

Economia fechada

Em relação ao comércio externo, o professor Kannebley é bem crítico. “Estamos extremamente defasados na questão da regulação do comércio e o viés dos atuais formuladores de política econômica é ainda mais protecionista. Para o Brasil entrar numa estratégia consistente que o torne atrativo para investimentos, a despeito de possuir uma matriz energética limpa, ainda me parece pouco provável que seja capaz de estabelecer compromissos de médio e longo prazo que envolvam questões institucionais objetivas de infraestrutura, como alteração de uma capacidade produtiva, de investimentos.” Vale lembrar que, segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV), entre os 30 principais exportadores mundiais de 2022, o Brasil ocupou a 26ª posição, contribuindo com apenas 1,3% nas exportações globais. 

Para o professor, o Brasil não é visto, na comparação com México, Índia e outros países asiáticos, como a primeira opção para concentrar a maior parte dos investimentos nessa nova oportunidade. “Alguns citam o setor automotivo. A gente sempre teve o setor automotivo ligado ao mercado interno, que sempre funcionou extremamente protegido e com baixa taxa de inovação, mesmo depois da abertura comercial dos anos de 1990. As montadoras, aqui dentro do Brasil, vão sempre procurar proteção. Elas nunca procuram fazer investimentos aqui como uma base exportadora, sendo assim é mais fácil para elas trocar proteção por impostos e apoio ao governo, do que procurar uma estratégia que torne aqui uma base exportadora para o mundo.”

A questão energética

O Brasil tem 82% de fontes limpas e renováveis na matriz energética, contra apenas 27% do México e, mesmo assim, segundo Kannebley, o Brasil tem que ter opções claras sobre como vai priorizar a produção ambientalmente sustentável, como vai estruturar a política energética, por exemplo. “Ainda temos conflitos sobre exploração de petróleo na margem equatorial. Esses conflitos revelam interesses locais e o governo ainda tem necessidade de financiamento, exploração de royalties. Por outro lado, há pressões ambientalistas que olham para a frente e dizem: ‘Talvez essa aqui não seja a estratégia mais interessante para o futuro’. Então, existe uma espécie de trade off entre o ganho econômico corrente e o ganho econômico futuro. Isso ainda não está resolvido e é uma das razões pelas quais o Brasil não se tornou um alvo claro para os investidores internacionais”, analisa. 

Por outro lado, segundo o professor, não há sinais de que esses objetivos serão buscados não apenas neste governo, mas ao longo de um período extenso, que é o prazo que se deve considerar para implementação e maturação de um novo paradigma tecnológico, o que poderia permitir que o Brasil se destacasse como uma nova vantagem comparativa adicional à sua produção atual. “Se a gente não tiver condições de priorizar políticas que promovam eficiência, abertura comercial e políticas ambientais e de financiamento que adotem claramente uma postura de produção de produtos e de tecnologia ambientalmente limpos, muito dificilmente nós vamos conseguir nos inserir nesse movimento (de nearshoring). Muito provavelmente, nós vamos ver esse movimento passar e mais uma vez a gente tem uma inserção pouco relevante nele”, conclui o professor.

A despeito das lições de casa que precisam ser feitas, Maskio se mostra até certo ponto otimista. “É importante a gente considerar que a economia brasileira é uma economia grande, ela tem um parque industrial ainda robusto, razoavelmente complexo. A gente perdeu a complexidade do parque industrial nas últimas décadas, mas a gente não perdeu por inteiro a robustez. É preciso ter uma estratégia para reconduzir ao fortalecimento e, principalmente, à complexidade desse parque industrial. O desafio está dado, ele não é simples, mas é conhecido. Os governantes tomadores de decisão ao longo do tempo não poderão dizer lá na frente que não conheciam os desafios e não sabiam o que deveria ter sido feito, que rumos deveriam ter sido tomados”, finaliza. É esperar para ver.


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