Não, não estamos em coluna de humor, mas o quadro, como se notaria a qualquer distância, é piada pronta. A cena, meme surreal para qualquer um que não viva uma realidade paralela de Capitólio dos trópicos, soa verossímil para adeptos das mais falaciosas e conspiratórias teorias antidemocráticas. Ufanismo de ontologia oblíqua que não se sustenta. De pé, apenas o espírito abertamente golpista. Esperam um deus ex machina, como em dramaturgias greco-romanas — uma solução súbita e mirabolante para seu “impasse”. Roteiristas da Antiguidade ficariam em desvantagem.
Essa triste distopia da vida real, como temos visto, nos transmite cenas das mais esdrúxulas: de “patriota” pendurado em caminhão a marchas sofríveis de civis em vias públicas; de júbilos coletivos por fake news a uma performance de hino nacional com honraria a um pneu, alçado talvez a novo símbolo pátrio. Isso para dizer o mínimo.
Sem dúvida, também ficaria para trás, em termos de “criatividade” de enredo, a famigerada Itaguaí, vila ficcional que abraçaria a loucura em O Alienista, de Machado de Assis. Por lá, as galerias de casos eram diversas, a ocupar a chamada Casa Verde. Um se acreditava “deus João”: a quem o adorasse, reservado estava o paraíso; aos demais, suplícios eternos, certamente na pior versão do inferno dantesco. Outro — para ficarmos em dois exemplos — conservava um silêncio para além do monástico, porque imaginava que, quebrando-o, faria declinar à Terra as estrelas do céu.
Seriam elas anjos decaídos, expulsos do convívio celestial? Ou, versão conspiratória, poderiam ser, de maneira disfarçada, futuros alvos de neomacarthistas? Não temos como dizer, mas, como assinala Machado acerca do personagem, “tal era o poder que recebera de Deus”.
A Casa Verde, assim designada pelo dr. Simão Bacamarte em razão de suas janelas nessa cor, hoje seria, estética reluzente e patriótica, a Casa Verde-Amarela — não a da política habitacional deteriorada, claro. O terreno de pesquisa seria fértil, e a conclusão se apresentaria tão cristalina quanto a do texto do nosso Bruxo do Cosme Velho: “A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia”. Ronda-nos, de fato, o imperativo da desrazão, construtor de um universo de pós-verdades, no qual se pode produzir realidades segundo desejos próprios, por mais que descoladas por completo da vida factual.
Bacamarte, com seu ímpeto de desbravar possíveis loucuras alheias, incorporava um espírito despótico: almejava ser um messias de Itaguaí, no encalço de demarcar “definitivamente os limites da razão e da loucura”. O messias do Brasil contemporâneo, em meio a aventuras de profecias recentemente frustradas, assumiu missão não muito distinta, embora, naturalmente, sem o viés cientificista (longe a ciência!) e com a adição de servilismo: acabou, ao longo dos últimos anos, separando para si um reino de súditos envoltos nas mais destemperadas insanidades — no caso, as de antipolítica. Modelo de servidão voluntária, diria, no século 16, o filósofo La Boétie. E os desatinos não param por aí: a militância extremada passou a fomentar também violências não simbólicas. Até quando?