O discurso amoroso (em literatura)

Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 04/07/2023 - Publicado há 10 meses

Comecemos por uma data significativa. No que diz respeito ao plano dos afetos, o imaginário ocidental foi contagiado, desde o advento do Romantismo no final do século 18, pela representação ora calculada, ora extremada, do amor. Na música, a rápida ou lenta sucessão de notas, executadas brandamente, ou com maior intensidade. Nas artes plásticas, a maior frequência dos retratos ambientados em meio à natureza. Na poesia árcade, o apelo ao repertório bucólico, que remontava a Teócrito, Virgílio, Petrarca, Camões etc.

Durante a primeira metade do século 19, o Romance tornou-se o gênero mais propício à representação das personagens amorosas. Afeto que, feito usina de força, era capaz de abalar as instituições sociais aparentemente mais sólidas, como a igreja, o casamento, a propriedade e a família. O vínculo entre o gênero literário (Romance) e o tema (Amor) foi tamanho que ainda hoje há quem designe o enlace amoroso como “romance”, sem distinguir o gênero lírico-amoroso da modalidade literária (Romance) em que ele costumava ser tematizado antes e durante o Oitocentos.

Para além das questões terminológicas, o que caracteriza o Amor na literatura romântica? Uma poderosa vitamina contra o tédio e a melancolia; expediente que permitia questionar as estruturas sociais e a unidade familiar; uma energia capaz de desafiar os costumes, as convenções vigentes; símbolo da derrota do cálculo para a espontaneidade; condição que contrastava a platitude dos afetos com a oscilação dos humores; situação em que a instabilidade afetiva predominava sobre a vida morna e sem surpresas; estágio capaz de desviar a personagem da rota certa, perturbar a ordem e comprometer o plano de metas etc.

Decerto, poderíamos estender a lista por quilômetros; porém, essa breve relação dá conta do essencial. A questão é que, ainda hoje, a arte literária sugere que o Amor pleno rivaliza com os métodos de controle e interdição. Como bem sabemos, o Amor pode ser o maior antídoto contra as variadas formas do Poder. O tema pode se tornar ainda mais interessante se levarmos em conta que há os afetos correspondidos e os não correspondidos.

No primeiro caso, percebe-se que as narrativas costumam obedecer a uma espécie de cartografia em que os territórios ocupados pelo Amor tendem a aumentar de extensão, até que o casal de enamorados supere todos os nós e consagre sua cumplicidade graças ao casamento. Quando isso acontece, supomos que a vida íntima foi sancionada pela família, grupo ou sociedade.

No segundo caso, o tema ganha em complexidade, já que o escritor precisa lidar com duas concepções divergentes: a da personagem desejante e a da personagem que não lhe corresponde amorosamente. Uma parte anseia por quase tudo; outra, pouco ou nada espera; uma personagem emite sinais constantes, feito chama; a outra exerce comandos a frio, concedendo, quando muito, indícios débeis de que deseja manter algum vínculo. Uma figura ora extravasa, ora atua em compasso de espera, em contraste com a outra que, vez ou outra, enviará ondas sonoras a distância segura, onde se sinta confortavelmente instalada.

Seja como for, para que o (gênero) Romance se desenrole, será preciso que a parte desejada não quebre o vínculo (por mais tênue que ele seja) com a parte desejante. O rompimento definitivo entre o sujeito amoroso e a pessoa que deseja implicaria anular o diálogo entre as personagens e inviabilizar a continuação da narrativa…

Os leitores ficariam sem saber: (1) o rumo que as criaturas tomaram; (2) o modo como o ser desejante superou (ou não) a desordem dos afetos; a maneira como a parte desejada seguiu mundo afora sem mirar o passado, supondo que fazê-lo impactaria a “sua” vida estável, ordenada e previsível…

No Prefácio de Fragments d’un discours amoureux, publicado em 1977, Roland Barthes supunha que “o discurso amoroso” era empregado por “milhares de sujeitos, mas sustentado por ninguém”. Talvez por isso mesmo, o sujeito amoroso “corresse mentalmente de um lado para o outro”, fabricando “intrigas contra si mesmo”. Uma personagem que se encontrasse em situação análoga a essa poderia declarar que a desordem dos afetos seria maior que a contenção ordeira; mais potente que o pragmatismo, por vezes confundido com maturidade.

Quase cinquenta anos depois, estamos a discutir hipóteses inerentes ao reino da ficção. E, como quase tudo cabe na obra literária, haverá quem tire proveito de um Romance, detectando nele episódios verossímeis, diálogos pertinentes, modos de conduta compatíveis com a existência contraditória – aquém ou além das páginas.

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