Praia em São Paulo, avaliação e democracia

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 05/09/2023 - Publicado há 8 meses     Atualizado: 15/09/2023 as 16:33

Lei Áurea supostamente assinada por D. Pedro II, praia na cidade de São Paulo e uma divisão de 36 por 9 com o resultado 6. Informações citadas por Marcio Dolzan, no jornal O Estado de S. Paulo, em 1º de setembro, animaram o noticiário no jornal, na TV e nas redes, deram cria. Informações erradas, contidas nos slides produzidos pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, para substituir o livro didático e, principalmente, preparar os alunos para as avaliações.

Estes são exemplos do que é notícia. A surpresa é tratar o fato de material didático.

Notícia é o que escapa do fluxo normal dos acontecimentos.

Incêndio é notícia. Se for grande e de preferência florestal.

E joias, são notícia? Só no caso do look carnavalesco superando o brilho dos alucinógenos.

Apostila, slide e PowerPoint servem de gancho para uma notícia? Difícil. Talvez citando praia na cidade de São Paulo.

Mas, afinal, qual é a intenção do secretário de Educação de São Paulo em trocar um material de melhor qualidade por um de pior qualidade?

Trata-se de um erro ou de uma política para matar em pequenas doses a democracia?

Errar é humano?

Depende.

Em alguns casos o problema é de outra natureza. Os erros escondem segredos, projetos não enunciados. Os acertos nem sempre trazem consigo a justeza das coisas.

A misteriosa proposta do secretário de Educação do Estado de São Paulo, ao trocar os livros didáticos por slides, faz parte de uma história cujo primeiro capítulo transcorre no Paraná. O enredo envolve livros didáticos, dinheiro, plataformas educacionais e desemboca em políticas de avaliação. As vítimas são os estudantes, os redatores e os leitores secretos do material. Como nos romances policiais, os citados, visíveis na cena do absurdo, são as vítimas, não os culpados.

Por favor, chamem um detetive!

“Segundo levantamento preliminar realizado pela professora doutora Carolina Batista Israel, da UFPR, o governo do Paraná já gastou mais de R$ 53 milhões com plataformas educacionais controladas por empresas privadas. Os gastos, extraídos do portal da transparência, são virtualmente infinitos, pois se paga para ter acesso temporário. ‘As plataformas são vendidas como um serviço por tempo limitado, em um modelo chamado de software como serviço’” (in APP Sindicato).

Imaginem que maravilha se todo esse dinheiro, em fluxo contínuo, fosse utilizado para pagar os professores ou formá-los melhor!

O plano do governo de São Paulo tem como objetivo interferir na forma de educar as crianças e os jovens por meio de plataformas digitais, desmobilizando o papel do professor em sala de aula, reduzindo os conteúdos, intensificando a vigilância em sala de aula e a repetição à exaustão.

O objetivo não é educar, mas pontuar posteriormente na avaliação.

“‘Estamos em risco de criar uma geração de analfabetos funcionais’, advertiu a ministra sueca da Educação, Lotta Edholm, após ver a nota do país despencar no Estudo Internacional de Progresso em Leitura (PIRLS), exame internacional que avalia o desempenho em leitura dos(as) estudantes.

Segundo matéria publicada no jornal francês Le Monde, a gestora concluiu que o mau desempenho é consequência da forma acrítica como o país introduziu recursos digitais nas escolas. A exemplo do que Ratinho Jr. está fazendo com as escolas paranaenses, nos últimos 15 anos a Suécia substituiu os livros didáticos por computadores, tablets, aplicativos e plataformas tecnológicas.

Na Suécia, as consequências negativas desse experimento foram observadas em toda a comunidade escolar. Alunos(as) perderam o hábito da leitura, professores(as) ficaram sem acesso a livros e as mães, pais e responsáveis não conseguem ajudar seus(as) filhos(as)” (in APP Sindicato).

As plataformas utilizadas de forma exaustiva em sala de aula induzem o estudante a acertos sem que ele desenvolva as habilidades voltadas para diferentes tipos de raciocínio. Ficam de lado a compreensão da circunstância, o posicionamento ético e solidário nas práticas escolares. Fica de lado tudo o que conforma os estudantes contra a violência da atualidade.

“‘Há uma vasta literatura sobre o processo de reflexão da prática do professor, de observar e debater como uma questão formativa. Mas isso deve acontecer após a construção de vínculo de confiança. Como não ocorreu dessa forma, cria-se um clima de desconfiança e vigia’ (Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho do Cenpec (entidade que atua na área da Educação pública)” (in UOL).

Avaliação, banco de dados e políticas públicas

São Paulo utiliza um Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp), para avaliar os alunos do 3º, 5º, 7º e 9º anos do ensino fundamental e da 3ª série do ensino médio. As provas incluem questões de Língua Portuguesa e Matemática. Os resultados são utilizados para orientar as ações da pasta integrando o cálculo do Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (Idesp).

As avaliações são úteis na construção de políticas públicas. Mas a qualidade desse instrumento depende de transparência e monitoramento na construção do modelo, na obtenção dos dados e na análise dos resultados.

As democracias utilizam banco de dados e avaliações para o emprego mais eficiente dos recursos públicos. A transparência é garantida por meio do controle da sociedade civil e de certificações produzidas por instituições nacionais e internacionais.

Já os regimes ditatoriais e os governos autoritários agem em sentido inverso. Impedem averiguações externas em seus bancos de dados, impõem sigilo para um grande número de informações e, sem comprovação, divulgam as informações (falsas, verdadeiras e misturadas, verdadeiras e falsas) afinadas com os seus interesses. A falta de transparência impede ou dificulta as análises dos avanços ou recuos das doenças, da alfabetização, do desmatamento, comparações entre estados, cidades ou países, com base na coleta de dados.

Durante a epidemia de covid, por exemplo, os dados produzidos por países autoritários, onde a transparência é exceção, impediram comparações. Políticas de saúde pública, em países pobres ou desiguais como o Brasil, um banco de dados é assunto de vida ou morte. Uma decisão política pode representar a chance de uma pessoa viver ou morrer. A epidemia de covid expôs as vísceras desse problema demonstrando a necessidade de banco de dados para distribuir corretamente e, em tempo hábil, respiradores.

Coube e cabe ao Ministério da Saúde, na época da epidemia e na atualidade, a difícil tarefa de organizar a distribuição de vacinas, remédios, respiradores, coração, fígado, rins e, principalmente, verbas para os diversos Estados e municípios da federação.

É difícil dividir o pão quando a comida é pouca e os recursos, escassos.

Censo demográfico e representação política

Os países democráticos, com instituições políticas legítimas, utilizam bancos de dados para garantir modelos de representatividade, negociados com os diversos setores da sociedade civil. Eles são úteis para aprimoramento da representação política do ponto de vista quantitativo e qualitativo.

“O recente Censo Demográfico de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelou diversas características a respeito da população nacional que podem apresentar direta influência em ações da administração pública. Entre as informações divulgadas pela pesquisa, as novas estimativas populacionais dos Estados brasileiros são um dos pontos que apresentaram destaque entre os especialistas.

Com a mudança no número populacional de cada Estado, há também a possibilidade de alteração do número de cadeiras oferecidas para cada Unidade Federativa (UF) na Câmara dos Deputados. Atualmente, a distribuição de cadeiras para cada Estado é realizada a partir de uma proporção da população. Assim, as mudanças nos quocientes populacionais deveriam ser acompanhadas de mudanças na Câmara para evitar distorções representativas.

Hoje, o Brasil conta com um número máximo de 513 cadeiras de deputados federais, conforme estabelecido na Lei Complementar nº 78 de 1993. A partir desse número, para definir quantos deputados cada Estado teria foi realizada uma proporcionalidade entre o volume populacional de cada unidade federativa e o número de cadeiras disponíveis (513) — divisão que não é realizada desde a promulgação da Lei. É importante destacar que o número máximo de deputados aceito para cada Estado é de 70, sendo necessário que cada unidade tenha pelo menos oito parlamentares” (in Jornal da USP).

Dentre as diversas estratégias utilizadas para destruir ou enfraquecer as democracias, uma das mais importantes envolve a manipulação de dados, interferências em levantamentos estatísticos e impedimentos para a sociedade ter acesso à informação, por meio do sigilo.

Os bancos de dados são importantes na vida política dos sistemas democráticos. Como observamos no caso brasileiro, os dados obtidos pelo censo pelo IBGE podem alterar a representação dos Estados no conjunto da federação.

Outro exemplo da importância dos bancos de dados são os auxílios dados pelo governo para as populações de baixa renda: por exemplo, Bolsa Família. Com informação correta e vigilância constante é possível evitar desvios garantindo o benefício para os mais necessitados.

Os bancos de dados podem ser utilizados para resolver problemas ou para criar problemas, para fortalecer ou enfraquecer o Estado e suas políticas sociais.

Bancos de dados e políticas públicas

Assistimos, durante o governo de Bolsonaro, ao desaparecimento dos bancos de dados sobre mortalidade por covid. Só tivemos acesso aos números da tragédia graças a um consórcio da imprensa.

Por que manter um apagão de dados sobre a letalidade da doença, sobre desmatamentos e sobre fome, principalmente, entre os indígenas? Por que não registrá-los (os indígenas)?

Testemunhamos a demissão de Ricardo Galvão, cientista respeitado pela comunidade científica nacional e internacional, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, em agosto de 2019, por informar os dados corretos sobre o desmatamento no Brasil. Foi demitido por quê? Os dados estavam corretos.

Acompanhamos o boicote no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sem recursos suficientes para realizar o censo demográfico, instrumento básico para a gestão do País. Por que gerar um apagão de dados sobre número de habitantes, idade, sexo, cor, religião, escolaridade, renda, saneamento, entre tantos outros?

Como desacreditar uma democracia?

Um dos instrumentos utilizados pela extrema direita para assassinar as democracias é desmontar e desacreditar os bancos de dados manipulando os modelos, a forma de aplicação e os resultados. O objetivo é torná-los ineficientes para a utilização em políticas públicas que favoreçam o fortalecimento do Estado. Trata-se de uma estratégia de guerra para enfraquecer o “inimigo”, o Estado democrático, e fortalecer as formas autoritárias de governo. O domínio da informação encoraja políticos autoritários e ditadores a ostentarem o poder por meio de superioridade informacional. Ao mesmo tempo fragilizam a oposição impedindo o acesso à informação.

A política de enfraquecimento da democracia construída pela extrema direita tem como alvos principais a saúde, a educação e o meio ambiente, pilares do Estado voltado para o bem-estar social. Ao desmontar as instituições e fragilizar o controle das informações, nas respectivas áreas, ao tornar o seu funcionamento inviável, por falta de funcionários, verbas e especialistas, a extrema direita produz uma narrativa sobre a ineficiência do Estado e sobre a eficiência da iniciativa privada.

O raciocínio polarizado opondo uma coisa à outra é de fácil repercussão nas redes. A extrema direita navega com facilidade nos raciocínios duais: o bem e o mal, o aliado e o inimigo, o certo e o errado. Faz parte de sua estratégia evitar raciocínios que explicitem ambiguidades humanas e políticas: a condição humana.

Informação, avaliação e políticas públicas

Várias instituições produtoras de informações e políticas públicas foram desestruturadas. Merece destaque o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

“O tamanho do tombo orçamentário para as políticas ambientais foi de 71% entre 2014, quando os repasses atingiram o maior patamar da história (R$ 13,3 bilhões), e 2021, contando com repasses de apenas R$ 3,7 bilhões” (in InfoAmazônia).

As avaliações, de grande importância na área educacional, conformam os seus modelos de acordo com as finalidades estabelecidas: diagnósticos, desempenho, comparação, autoavaliação, entre tantas outras.

Avaliação em educação. Acertos e desvios

Para que possamos saber se um jovem do Norte do Brasil desenvolveu as mesmas habilidades em linguagens e raciocínio matemático que um jovem do Sul do Brasil é necessário ajustar a amostra por meio de um determinado número de questões difíceis, médias e fáceis. Para calibrar é preciso testar em todo o Brasil as questões para saber se elas são de resolução fácil, média ou difícil. Sem testar, ninguém sabe o que é fácil, médio ou difícil. A calibragem deve levar em conta as diferenças regionais, as especificidades das escolas, pequenas, médias ou grandes, a familiaridade dos temas típicos da vida urbana ou rural, as linguagens representativas das diversas regiões brasileiras, entre outras miudezas. Os ajustes dos diferentes níveis de dificuldade dependem de técnicos especializados capazes de produzir, testar e analisar os resultados. A repetição do modelo ao longo de anos permite comparar os resultados de um ano para outro, de uma região para outra, entre escolas e alunos.

A formatação do modelo e sua implementação ao longo de anos não pode sofrer alterações ou interferências de nenhum tipo (políticas, econômicas, religiosas, entre outras). Razão pela qual só servem como indicador avaliações realizadas em democracias com transparência e verificação interna ou externa.

Se ocorrer qualquer interferência, facilitando ou dificultando a avaliação, a série dos dados deixa de ter validade como instrumento de medida, de comparação. O resultado de uma avaliação pode ser totalmente alterado se o número de questões fáceis for aumentado e o número de questões difíceis, diminuído. Ou ainda se os estudantes de uma determinada região receberem um tipo de treinamento e outros não, se a aprendizagem seguir métodos e conteúdos muito diferentes de região para região.

Planejamento, democracia e produção de notícia

Qualquer tipo de planejamento estratégico, na atualidade, tem suas bases estabelecidas em um bom banco de dados. Nas democracias contemporâneas eles devem ser independentes, transparentes e sujeitos a verificação independente. Os bancos de dados se tornaram aliados das políticas estatais, de um planejamento mais eficiente, do fortalecimento do Estado em um mundo globalizado, pelo uso intenso da tecnologia e da informação.

Conclusão da novela policial: os slides têm como meta interferir na avaliação para desestabilizar a estrutura educacional existente no Brasil desacreditando todos os modelos educacionais, de centro e de esquerda, em processo de discussão e implementação no Brasil.

O absurdo, slides, faz parte de uma estratégia de guerra: desmobilizar a democracia.

Apostilas e plataformas digitais

Apostilas e plataformas digitais não educam humanos. Você tem dúvida?

Deixe uma criança, desde o seu nascimento, entregue aos cuidados de máquinas, plataformas. Máquinas treinadas para dar mamadeira, para trocar fraldas e, lógico, máquinas treinadas para ensinar bebês, desde o seu nascimento, a manejar a lógica matemática, calcular juros, de preferência compostos…

O que vai resultar desse empreendimento?

Assinale a alternativa correta:

(  ) uma máquina
(  ) um animal
(  ) uma pepita de ouro
(  ) terra devastada
(  ) todas as anteriores.

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