História em pedaços: estilhaços da memória de 1972-1973

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 19/09/2023 - Publicado há 8 meses

A memória não é um filme. Filmes despertam memória.

A memória é composta de estilhaços, dolorosos e prazerosos. É aleatória, não tem enredo, nem sentido. É um flash. Algumas lembranças brotam e sofrem arrumações posteriores. Os neurônios são gentis, liberam espaços. Cabe ao tecelão da memória, o historiador de ofício, reunir fatos, documentos, depoimentos, tornando-os inteligíveis. Na nossa imaginação, algumas memórias viram uma breve novela, ganham sequência, com começo, meio e fim. Neste formato, de história cronológica, memórias são rebobinadas como em um filme. O passado vira presente reformado, com sentido, tendente a valorizar as ações do memorioso.

Os estilhaços da década de 1970 expressam desencantamento.

O primeiro estilhaço

Cenas do filme O Último Tango em Paris, de 1972, dirigido por Bernardo Bertolucci. Um drama erótico protagonizado por Maria Schneider (1952-2011) no papel de Jeannie, e Marlon Brando (1924-2004), como Paul. Ambos, em momentos posteriores de suas vidas, se referem às filmagens com incômodo. Reconhecem a ambiguidade gerada pelo sucesso do filme e pela crítica ética e estética. A ação dramático-erótica entre os dois atores foi combinada entre Bertolucci e Brando sem que Maria soubesse dos detalhes da filmagem: a cena da manteiga e outros pormenores. Para Bertolucci a ideia era captar uma emoção real, a violência no ato sexual, o ponto zero da estética romântica. Com o passar dos anos, ambos reconheceram a agressividade e a falta de transparência na filmagem. Mas este não é o tema deste artigo.

Em 1972, no momento do lançamento do filme, as contradições eram de outra natureza.

O filme foi proibido em diversos países. Em Portugal, só pôde ser exibido cinco dias depois da Revolução dos Cravos, em 30 de abril de 1974. Na Espanha, em razão da censura franquista, somente em 1977. No Brasil, em 1979. No Uruguai, em 1984. No Chile e na Turquia, em 1992, e na Coreia do Sul, em 1996. Na Itália, o filme foi lançado em 1975 e, em seguida, teve as copias confiscadas por determinação da justiça. Os autores da obra, Franco Arcalli e Bernardo Bertolucci (este último também diretor), tiveram prisão decretada e suspensão dos direitos civis e políticos cassados por cinco anos. O filme rendeu enorme bilheteria. Na temporada nos EUA, 32,95 milhões de dólares e em âmbito internacional 87,8 milhões de euros. A bilheteria sugere sucesso. Filas imensas para ver o filme. Por quê?

Embora a presença do ator Marlon Brando e as cenas de sexo tenham impulsionado a bilheteria, é bom lembrar o fato de os filmes pornôs já existirem no mercado desde 1915. O clássico Free Ride, com duração de nove minutos, é um dos primeiros. Na sequência a produção foi pródiga no século 20.

O filme O Último Tango em Paris vai muito além das cenas de sexo, do texto grotesco e propositadamente vulgar. A direção de Bernardo Bertolucci transforma uma história banal em uma reflexão sobre o desencantamento do mundo, sobre o papel performático das famílias e do amor. Um tiro no coração do pensamento conservador. Como pano de fundo, as guerras, da Argélia e outras tantas semelhantes. Descolonização e Guerra Fria estão no horizonte invisível do filme. Existe dor frente à circunstância da histórica encenada. Melancolia ao enterrar em cova rasa as utopias românticas dos séculos 19 e 20.

Faz parte da crise existencial do século passado um profundo desencantamento, expresso pelo suicídio de Rosa, pelo tango dançado de forma performática e no tiro, cena final. O Último Tango em Paris é expressão cinematográfica de sociedades autoritárias, conservadoras, raiz das ilusões perdidas, expostas na fotografia de Vittorio Storaro (o “Mago da luz”) e na música de Gato Barbieri, compositor e arranjador argentino. Perfeito.

O conservadorismo vicejava. E viceja, hoje. Semelhanças? No baixo corporal?

O filme O Último Tango em Paris estreou (comercial), em Paris, no dia 15 de dezembro de 1972. Allende morreu em 11 de setembro de 1973. O músico Victor Jara, em 16 de setembro de 1973, no estádio (multiesportivo) do Chile, transformado na ocasião em campo de concentração e extermínio pelos militares golpistas chilenos. Conforme comprova a autópsia realizada posteriormente nos restos mortais do músico, ele teve diversas fraturas em diversas partes do corpo e recebeu 44 tiros. Esta história sempre povoou a minha cabeça como um estilhaço. Basta ouvir a palavra Chile e a tragédia me vem à cabeça. É recorrente o pensamento. Vejo Pinochet com a sua farda aprumada e os dedos quebrados de Jara. Ele era violonista, compositor, diretor teatral e professor. Somos, de certa forma, irmãos de sonhos. A década de 1970 no Brasil concentrou o maior número de mortos e desaparecidos. A USP foi pátria de 10% deles. Luiz Eduardo Merlino, meu colega de classe, foi torturado e morto pela repressão na Oban (Operação Bandeirantes).

Pensar os anos de 1970, instigada por um amigo, Luiz Serrano, desencadeou na minha memória, instantâneos: restos sonoros, Victor Jara, personagens, Brando, Maria Schneider, políticos, Allende, prédios, La Moneda e um ganso, imagem rural recortada de um filme urbano, ítalo-francês, O Último Tango em Paris.

Década dura. Assisti ao filme em Paris, pouco tempo depois da morte de Allende e de Merlino. Os neurônios sobreviventes guardam poucas lembranças dessa década trágica.

Restos da época: Tradição, família e propriedade.

Mudou?

O segundo estilhaço

Sobraram palavras, sons e perguntas.

“O sonho acabou.”

Sons, Imagine, de John Lennon. Álbum lançado em 1971.

E perguntas…

Não é melhor fazer amor e não guerra?

O terceiro estilhaço

Lembro-me de uma foto no jornal com La Moneda em chamas. Eu tinha 25 anos. Dois anos antes, conheci o sistema penitenciário paulistano. Sabia o que representava um golpe militar. A tragédia conservadora e autoritária se espalhava pelo Cone Sul — Paraguai (1954-89), Brasil (1964-85), Argentina (1966-73), Peru (1968-80), Uruguai (1973-85), Chile (1973-90) —, levando para o exílio muita gente, especialmente para o México e a França.

Empiricamente, tendo a afirmar que a memória apaga com mais facilidade a dor do que o prazer. Primeiramente pensei ser este um problema pessoal, resultante de uma desmielinização, ou queda de dopamina, coisas que só o Dr. Dráuzio explica. Mas uma experiência me permitiu considerar uma modesta hipótese como verdadeira. A memória, às vezes, é generosa com a dor. Apaga. Às vezes é traiçoeira. Invade a cabeça sem avisar. Percebi que o esquecimento fazia parte da memória, quando a diretora do filme A Torre das Donzelas, Suzanna Lira, reuniu as presas para relembrar detalhes do presídio. As memórias tinham vazios, lugares em branco, discordâncias. A escada era assim ou assado, a porta ficava aqui ou ali, fulana chegou do Dops antes ou depois de beltrana. O tempo correu relativamente igual para todas. Em média, 50 anos se passaram. A morfologia das sinapses, de umas e de outras, nem sempre resultava em memórias semelhantes.

É melhor lembrar ou esquecer?

O que representou a morte de Allende para uma jovem grávida, assistindo ao fim dos sonhos da sua geração? Uma vontade de encontrar um lugar onde fosse possível escutar qualquer música, assistir a qualquer filme, aplaudir qualquer peça de teatro. Um mundo novo, livre, distante dos parâmetros da performática família “feliz”, regida por generais apaixonados por guerras, conflitos e armas.

Este sentimento de desencantamento varria boa parte do mundo. Bertolucci, Marlon Brando e Maria Schneider puseram o dedo na ferida, com uma metáfora forte, animal. A família feliz e bem nutrida da personagem Jeannie tinha um pai combatente na Guerra da Argélia. Uma miudeza histórica ligando o Brasil ao filme me vem à memória. As associações mentais são perigosas. Paul Aussaresses, general francês, adido militar da França no Brasil, antes de morrer fez declarações detalhadas sobre as torturas praticadas na Guerra da Argélia. Citei o fato no relatório da Comissão da Verdade da USP. Ele transitou no Planalto Central. Era sócio do Clube Naval de Brasília, categoria CF nº 018-E. O militar era especialista-professor na prática de torturas, “foi acusado pelo general chileno Manuel Contreras, fundador da Dina, a polícia secreta do regime de Augusto Pinochet, de ter treinado nesta época no Brasil oficiais chilenos e de outros países latino-americanos”.

O desencantamento tinha raízes profundas.

O filme expressa o clima de uma época com personagens transitando entre os continentes americano e europeu. Paul/Brando conta a sua vivência, em parte verdadeira, pelo mundo. Na última cena do filme, Paul utiliza o quepe do pai de Jeannie, um militar francês combatente. Combatente onde? Na Argélia.

A mãe da suicida Rosa, mulher de Paul, arrumou a filha no caixão, maquiada. Ela não usava pintura no rosto, observa Paul. Irritado com a mãe, Brando expressa, sozinho, diante da mulher morta, incompreensão, angústia e raiva. Sensibilidade captada no corte da cena. Na sequência, quem abre a porta? A bela Maria. O trabalho de Brando e Maria é irretocável. Ponto alto de ambos na carreira cinematográfica. Concordo com o crítico Pablo Villaça: Marlon Brando é o melhor ator da Sétima Arte.

O jovem namorado de Jeannie, Tom, faz o trajeto inverso. Sensibilidade narcísica de um diretor iniciante decidido a filmar cenas amorosas de desejo ausente. Um anúncio dos novos tempos. Só amor cenográfico, a beleza feminina e outros pequenos indícios de autoadmiração.

Dez meses depois da estreia do filme O Último Tango em Paris, em 11 de setembro de 1973, Augusto Pinochet, com o apoio da Força Aérea e da Marinha, liderava o ataque a um governo legalmente eleito no Chile. A morte de Allende punha um ponto final em um sonho: paz, segurança e cooperação. O maior sonho do pós-guerra.

Allende era a expressão do último caminho (constitucional) viável para a mudança. Em 1973, a morte de Allende representou o fim. Um sonho bombardeado. Os conservadores tomaram o poder político e econômico e impuseram uma agenda conservadora, em tons rosa e azul. Aprisionaram as artes, o prazer, a forma de viver e morrer. A greve dos caminhoneiros em 1972, ao ameaçar o desabastecimento das cidades, encontrava apoio de pequenos e médios comerciantes, a nacionalização das minas de cobre fortalecia a oposição conservadora, tanto nacional como internacional.

Sem apoio popular e cercado de inimigos poderosos (EUA), a missão de Allende se tornou impossível. A brutalidade do ataque ao palácio de La Moneda, o suicídio de Allende e a brutalidade da morte do músico Victor Jara e tantos outros puseram fim a qualquer sonho de um mundo melhor. (Eu ainda espero um pedido de desculpa dos democratas norte-americanos.)

Distribuir renda é tarefa dura. Exige treinamento, persistência e indiferença para com o fracasso.

Hoje, me emociona ler os textos e entrevistas de estudiosos e amigos de Allende, os últimos a deixarem o palácio de La Moneda em pleno bombardeio. Amigos e as filhas, decidindo quem fica e quem vai. Não é fácil optar por um suicídio político. Onde eu disparo o tiro? Dói?

As razões do sucesso do filme O Último Tango em Paris

Uma parte do sucesso pode ser atribuída à sexualidade e à presença do ator, Marlon Brando. Mas o filme vai muito além. O enredo, os cortes, o ritmo, a luz e a sonoplastia expressam um profundo desencantamento com o mundo. Só isto. Os encontros entre dois desconhecidos partem de uma combinação: eles, Jeanne e Paul, manteriam em segredo seus nomes e vidas. Fariam sexo no seu estado puro, animal.

“Mas por que Paul e Jeanne agem daquela maneira? Ele, porque só; ela, porque sim.”

Assisti a este filme franco-italiano em Paris, com minha filha pequena no colo, em sala de cinema. Ela já falava algumas palavras. Acordou no meio, viu os gansos e disse: Qua-Qua. Nunca mais esqueci. Pedaços de memória que unem passado e presente.

Aposto em Gabriel Boric. Por quê? Ele, à moda de Salvador Allende, não teme o fracasso, o Congresso e, até mesmo, a quase impossível vitória.

Desde as confissões públicas de Maria Schneider sobre o caso em 2006 e, sobretudo, à luz da transformação sociocultural propulsionada a partir de 2017 pelo movimento #MeToo, a percepção ética e artística do longa-metragem alterou-se. Como escreveu o respeitado crítico norte-americano Richard Brody na The New Yorker de 30 de novembro de 2018, “durante algum tempo, o filme trouxe aclamação a Bertolucci; à luz da História, trouxe-lhe, com justiça, infâmia.” (Pedro Marta Santos)

O sonho acabou? Ou estamos no primeiro ato?

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