Nem Machiavelli falou o que lhe atribuem, nem “O Pequeno Príncipe” é obra infantil

Nesta sua coluna, Marília Fiorillo se dispõe a corrigir alguns equívocos gerados não só pela confusão de um advogado do 8 de janeiro como também consolidados pelo senso comum

 22/09/2023 - Publicado há 7 meses
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Um dos assuntos mais comentados nos últimos dias foi a gafe que atribuiu a Maquiavel a autoria de O Pequeno Príncipe. “No melhor espírito de chanchada, o advogado de um dos réus golpistas do 8 de janeiro confundiu, esta semana, O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry com O Príncipe, de Maquiavel. Houve muitos memes divertidos, mas as merecidas zombarias também derraparam em alguns equívocos. Faltou lembrar que Maquiavel nunca escreveu a frase “os fins justificam os meios”. Nunca, jamais. O que lhe trouxe a injusta má reputação foi uma passagem, no capítulo 18 de O Príncipe, em que ele sugere que é permitido – e às vezes até recomendável – ao governante ser dissimulado, traiçoeiro e cruel. Mas apenas e exclusivamente se este “fim” for trazer paz e estabilidade a um território (Itália) dilacerado por conflitos crônicos entre cidades, pilhagens e caos promovidos pela disputa entre grandes famílias, os Orsini, Sforza, Medici, Colonna, Borgia.

O “fim” do renascentista Niccolò Machiavelli não é qualquer um. O fim é uma Itália independente, pacificada e unificada. Que insulto atribuir ao maquiavelismo o elogio da patifaria pela patifaria! O Príncipe é a primeira obra a abordar a política de modo descritivo, como ela é ( por isso, trata-se de um manual, um guia), pois, até então, os filósofos haviam se limitado a falar de política ao modo prescritivo, isto é, como ela deveria ser num governo ideal (vide A República, de Platão). Esta obra curta, honesta e incisiva permanece como o clássico dos clássicos, genial. Teria sido uma boa ocasião para resgatar o verdadeiro sentido da obra maquiaveliana e eliminar as adulterações que o senso comum erroneamente lhe atribui.

O outro equívoco é que O Pequeno Príncipe não é um livro infantil, muito menos o preferido das candidatas a Miss Universo, pela suposta bobice e ingenuidade. Ao contrário. São aforismas filosóficos, meditações existenciais sérias disfarçadas de fábula. Para todas as idades. A trapalhada do causídico brazuca também poderia ser uma outra oportunidade para conhecer o pensamento de Antoine de Saint-Exupéry em outro livro ótimo, Escritos de Guerra (1939-1944), com prefácio de Raymond Aron.


Conflito e Diálogo
A coluna Conflito e Diálogo, com a professora Marília Fiorillo, vai ao ar quinzenalmente sexta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9 ) e também no Youtube, com produção da Rádio USP, Jornal da USP e TV USP.

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