Na França, banimento da abaya reacende polêmica sobre direitos individuais

Exibir crucifixos, quipás ou véus não se tornaria, na prática, dividir e segregar, em vez de promover a convivência entre iguais?, indaga Marília Fiorillo

 08/09/2023 - Publicado há 8 meses     Atualizado: 11/09/2023 as 12:00
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Sobre a polêmica na França a respeito da proibição da vestimenta islâmica, se pudéssemos dar um título ao nosso podcast de hoje, ele seria Nem cruz, nem véu”. Vamos explicar. Há cerca de duas semanas, o Ministério da Educação da França proibiu o uso da abaya em escolas públicas. Abayas são aqueles vestidos longos e largos, que ocultam braços e pernas, que chamamos, aqui, de caftã. Em 2004, a França já havia banido a ostentação, em repartições públicas, do hijab (lenço que encobre o cabelo) e do niqab (traje muçulmano feminino que cobre o queixo e a testa, singularmente parecido com o hábito de algumas ordens de freiras católicas). O mesmo ocorreu, há anos, com a proibição dos burkinis nas praias francesas (trajes de banho parecidos com roupa de mergulhador, que as famílias fundamentalistas muçulmanas exigiam de suas esposas, filhas, irmãs). Com o banimento da abaya, agora, a polêmica reacendeu. A questão é complexa, pois a França se orgulha de ser um Estado laico, mas muitos veem a decisão como uma limitação dos direitos individuais.

O que está em jogo nessa polarização? Curiosamente, a questão está sendo sequestrada e distorcida em prol de outras agendas. Por exemplo, a favor do banimento está a extrema-direita raivosa, anti-imigração e anti-islâmica, que é tudo menos democrática e republicana.  E contra o banimento da abaya está parte da esquerda identitária, para a qual questões de gênero, raça e minorias se sobrepõem ao clássico adágio, tão francês, “egalité, liberté, fraternité”, com ênfase aqui no igualdade. Aquela porção à esquerda que protesta em nome das liberdades civis acaba por relegar o imperativo do Estado laico a um segundo plano.

Falta perguntar o que achariam os verdadeiros interessados, isto é, as meninas, cujas famílias fundamentalistas e patriarcais as obrigam a usar, em público, carimbos religiosos. Será que a tradição secularista francesa (que proíbe todos os símbolos religiosos em repartições públicas) não seria a única rota de fuga de que essas meninas dispõem para facilitar sua sociabilidade, sua inclusão (e mesmo sua escolha adolescente) sem serem castigadas em casa? Exibir crucifixos, quipás ou véus – em tese um sinal de tolerância multicultural – não se tornaria, na prática, dividir e segregar, em vez de promover a convivência entre iguais, meninas e meninas, apenas destoantes em sua prática religiosa?

Marcar gente, como se marca gado, nunca foi boa prática. Nem é o caso de mencionar a triste memória de estrelas amarelas e tarjas nas roupas. Basta lembrar a famosa letra escarlate A, costurada na roupa da adúltera pelos puritanos de Salem no século 17, descrita no romance homônimo de Nathaniel Hawthorne. A letra escarlate era uma senha que submetia sua portadora ao escárnio, desprezo e mesmo violência impune dos puritanos de Salem. Carimbos étnicos e religiosos, em espaços públicos de sociedades secularistas, tornam seu portador (apesar das boas intenções multiculturalistas), um pária, um autoexcluído, um não-cidadão dentro de um Estado laico. Em casa ou na rua, é outra história: que o sikh use seu turbante e não seja confundido pelos ignorantes com árabe ou muçulmano, ou a moçada, com seus piercings e tatuagens.


Conflito e Diálogo
A coluna Conflito e Diálogo, com a professora Marília Fiorillo, vai ao ar quinzenalmente sexta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9 ) e também no Youtube, com produção da Rádio USP, Jornal da USP e TV USP.

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