Moradores de comunidades violentas estão mais expostos a doenças físicas e mentais

Hipertensão, insônia, ansiedade e depressão são algumas das mazelas que afetam os moradores de comunidades periféricas, segundo estudo cujos dados são analisados aqui por especialistas da USP

 05/09/2023 - Publicado há 8 meses
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As cidades são instituídas como forma de reprodução da segregação social, em que o acesso a recursos não é apresentado de forma igualmente distribuída em todos os ambientes – Foto: Vilar Rodrigo/Wikimedia Commons/CC BY-SA 3.0

 

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Segundo o Centro de Estudos da Segurança e Cidadania (CESeC), os moradores de comunidades afetadas pela violência policial apresentam maiores chances de desenvolver diferentes doenças —  como hipertensão, insônia, ansiedade e depressão, sendo também possível observar que, nesses locais, os atendimentos de saúde pública são constantemente interrompidos em decorrência das operações policiais. 

Cerca de 51% dos moradores das comunidades mais violentas apresentam alguma dessas condições de saúde, contra 35,9% dos que vivem em periferias pacíficas. Note-se também que cerca de 29,6% dos indivíduos que vivem em favelas com tiroteios apresentam sintomas de depressão contra 15,7% dos que vivem em zonas que não são tão afetadas pela violência. 

Perspectiva social

Ana Fani Alessandri Carlos, professora do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, explica que, antes de tudo, a compreensão acerca do que a violência representa é essencial. “Penso que as condições críticas vividas nas cidades têm como fundamento a violência do processo de urbanização, que se realiza com o momento de valorização do capital em detrimento da realização da vida humana”, explica a especialista. 

Ana Fani Alessandri Carlos – Foto: Leonor Calasans/IEA-USP/CC by 4.0

Nessa direção, as cidades são feitas como forma de reprodução da segregação social, em que o acesso a recursos não é apresentado de forma igualmente distribuída em todos os ambientes. Ou seja, é nos grandes centros urbanos que se concentram os indivíduos que apresentam maior renda  — e com isso maior acesso a melhores mecanismos —, enquanto a população de menor renda desloca-se para as periferias urbanas. 

“Essa correlação renda-lugar da moradia está definida por relações contratuais claras que escondem, de um lado, a exploração do trabalho e, de outro, a mercantilização do solo urbano produzido como mercadoria, portanto, objeto de compra e venda”, declara a professora. Assim, a cidade pode ser observada também como um objeto de privação que atribui a diferentes indivíduos a precariedade de serviços básicos que são primordiais para a sobrevivência. 

Para Ana Fani, essa forma de produzir o espaço urbano traz dentro de si a violência. Por isso, a professora relata que a forma como as operações urbanas acontecem nas cidades apresenta-se de maneira esclarecedora da lógica que destitui o cidadão desse espaço. “As intervenções urbanas se fazem expulsando grupos sociais que ficam no caminho das possibilidades de realização do lucro através da criação de novas áreas passíveis de serem vendidas no mercado imobiliário”, adiciona. 

É importante destacar também que grupos específicos podem ser encontrados nas periferias nacionais, formadas, majoritariamente, por trabalhadores informais, negros e pardos. Dessa maneira, de acordo com a especialista, o acesso aos serviços que sustentam a vida urbana é, nesses locais, negado. Note-se que neles os  direitos não vigoram, a não ser quando conquistados  por meio de uma luta marcante. 

Atuação psicológica 

Luís Guilherme Galeão, professor de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, debate esse cenário avaliando que “a saúde mental não é uma condição meramente individual, pois ocorre nas relações comunicacionais e materiais que estabelecemos com outros seres humanos e com o nosso ambiente social”. 

Luiz Guilherme Galeão da Silva – Foto: Sandra Codo/IEA-USP

Por esse motivo, o desrespeito à integridade da pessoa — que pode ser apresentado tanto como violência física quanto psicológica — apresenta-se como uma direta ameaça à dignidade da pessoa humana. “As instituições como as polícias, os governos estaduais e municipais, os sistema de saúde, a comunicação de massa e o sistema de justiça, que devem cuidar e impedir esse desrespeito, não podem permitir que seus agentes tratem a população pobre como inimiga ou com descaso, pois isso gera sofrimento psicossocial”, explica Galeão. 

Assim, o professor, da mesma forma como Ana Fani, reforça que os marcadores que definem a vulnerabilidade no País são raça/etnia, idade, gênero, orientação sexual e classe social, sendo primordial que o acompanhamento psicológico possa respeitar as vivências e as vulnerabilidades individuais, grupais e institucionais para funcionamento efetivo. 

Políticas públicas 

Ana Fani reflete também que, apesar da melhora do cenário atual parecer desafiadora, algumas medidas poderiam ser tomadas para que um avanço dessa questão seja observado. Assim, em primeiro lugar, faz-se necessária a democratização do orçamento público, seguido pela reconstrução de alianças políticas para que seja, de fato, construída uma democracia em que a população possa ser ouvida.

Destaca-se também, para a professora, a necessidade de criação de um imposto sobre a riqueza e o patrimônio, a regulação do mercado imobiliário e a criação de mecanismos de controle das políticas públicas para que elas possam ser encaminhadas para demandas sociais como habitação, educação, saúde e construção de infraestrutura de água, luz e esgoto. 

Para além disso, a ampliação dos ambientes públicos como espaço de debate para a preservação das conquistas de direitos e para o reconhecimento de novas conquistas destinadas a esses sujeitos. 

Saúde pública 

Para entender as questões de saúde associadas a esse processo é primordial compreender a representação da violência nesse espaço. Aline Conegundes Riba, pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, explica que a violência é múltipla e, por isso, existem diferentes fatores para explicá-la. Assim, as pessoas que são expostas a situações de violência apresentam maior risco de desenvolver agravos que podem ser temporários ou permanentes — aspectos que dependem dos fatores associados às dinâmicas das agressões. 

Aline Conegundes Riba – Foto: Reprodução/Lattes

“Um dos fatores que estão relacionados com as consequências da violência é o seu tempo de exposição”, explica a especialista. Assim, a possibilidade de desenvolvimento de uma consequência prolongada em decorrência de uma violência pontual é, na maioria das casos, menor do que a probabilidade para aqueles que sofrem desses agravos por um período mais extenso. 

Pensando em minimizar os riscos de consequência, a especialista analisa que é necessário pensar no coletivo, sendo essencial se debruçar nos três níveis de prevenção para o estabelecimento de estratégias efetivas. A abordagem primária pretende, portanto, atuar antes que a violência ocorra, sendo primordial a presença de estudos que compreendam a sua formação para a prevenção de sua ocorrência. “Na prevenção primária, a gente precisa investir no trabalho de sensibilização com os próprios profissionais, uma vez que eles estarão nas pontas, com a população, e podendo trabalhar e ter uma atuação preventiva nas comunidades”, adiciona Aline. 

A atuação secundária pretende, por sua vez, trabalhar com a identificação precoce das situações de violência e com a intervenção como forma de não agravar a situação. Por isso, a presença de profissionais na identificação de sinais de violência é primordial para que a intervenção possa ser feita a partir da avaliação adequada do indivíduo — com a possibilidade de minimização de consequências. Por fim, a abordagem terciária tem como objetivo os cuidados prolongados após a situação de violência. “Toda a atenção necessária é fornecida para que a pessoa consiga superar a situação de violência e retomar sua própria história”, finaliza a especialista. 

*Estagiária sob supervisão de Paulo Capuzzo


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