Buscar um totem para obedecer cegamente e diante do qual se ajoelhar

Nesta sua coluna, Marília Fiorillo faz uso do conceito de cientologia para abordar em sua análise um comportamento típico dos cultos: a necessidade de pertencimento e de seguir um líder, em nome do qual tudo se faz sem questionamentos

 09/09/2022 - Publicado há 2 anos

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As pessoas só escutam o que querem ouvir. E, em alguns países, o que desejam ouvir são insultos aos outros, mentiras crassas e principalmente discursos nos quais impera a boçalidade. Não se trata apenas de grosseria ou quebra de protocolo, mas da pura, límpida e ululante boçalidade. O que leva gente de todas as classes, raças e idades a se comprazer e aplaudir baixarias? Alex Gibney, um dos melhores cineastas atuais, sinaliza uma resposta no documentário Going Clear: Scientology and the Prison of Belief  (Cientologia e a Prisão da Crença): tais reações são típicas de participantes de cultos, cuja lavagem cerebral os leva a um comportamento disposto a tudo em nome do líder.

Gibney ganhou o Oscar em 2007 com Taxi to the Dark Side, documentário sobre a tortura e morte de um taxista afegão nas mãos das forças americanas de ocupação, num daqueles antros de tortura clandestinos que os Estados Unidos criaram pelo mundo seguindo a doutrina Rumsfeld de que valia tudo, afogamento, espancamento, choques, desde que não se atingisse diretamente órgãos vitais. Rumsfeld, ao assinar o Patriotic Act, ainda achou engraçado anexar, de punho próprio, que, se ele ficava horas de pé trabalhando, qual seria o problema de manter os “inimigos combatentes”, prisioneiros encapuçados, nus e humilhados de Abu Ghraib ou Guantanamo, na mesma posição?

Fazer gracinhas com tortura ou com gente agonizando por falta de ar está além da indecência. É criminoso e boçal. No caso de Rumsfeld, várias organizações prestigiosas de direitos humanos e liberdades civis o processaram, inúmeras vezes, mas sem sucesso. O pior, porém, é que tem gente que ri e adere a essas abominações. Seriam todos sociopatas? A explicação no documentário sobre cientologia é outra: não, foram descerebrados.

Cientologia, de 2015, recebeu o Emmy de melhor documentário e o aplauso da crítica. Está disponível na web, e faz parte da série Why democracy, na qual o cineasta abordou temas prementes e escamoteados, como a epidemia de opioides nos EUA, ou a fraude da Theranos, laboratório do Silicon Valley que prometia milagres e entregava golpes, capitaneado por Elisabeth Holmes, que comentamos em um podcast anterior.

Cientologia é uma dissecação do culto fundado por Ron Hubbard, que atraiu personalidades famosas como John Travolta e Tom Cruise. Misturando a obtusa doutrina do mind control  e teosofia de segunda, prometia mundos e fundos a seus participantes, que pagavam por supostos testes de autoconhecimento.  Amealhou bilhões de dólares e forneceu, de fato, trabalho escravo a seus membros, que eram punidos se não cumpriam as metas. Vários ex-membros do alto escalão da seita foram entrevistados. Muitos não conseguiam exatamente explicar por que haviam entrado nessa roubada, mas é patente, neles, a necessidade de pertencimento e a velha e odiosa ânsia que acompanha a história da humanidade: buscar um totem para obedecer cegamente e diante do qual se ajoelhar. É desconfortável admitir, mas nem só de sociopatas são feitos os cultos, inclusive os políticos. Rebanhos em pele de matilha são o que mais se vê.


Conflito e Diálogo
A coluna Conflito e Diálogo, com a professora Marília Fiorillo, vai ao ar quinzenalmente sexta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9 ) e também no Youtube, com produção da Rádio USP, Jornal da USP e TV USP.

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