Misturar vida e mercado pode resultar em desastre

É importante separar as duas palavras, focalizando a profunda e constante tensão existente entre elas

 05/06/2020 - Publicado há 4 anos

 

Fotomontagem – foto: Oscar Cortés – Flickr

Por Janice Theodoro da Silva

Alguns ingredientes utilizados na alimentação, quando misturados, resultam em combinações saborosas.  Um exemplo, bastante popular, é a sopa de abóbora com gengibre. A combinação é perfeita. Mas nem sempre as misturas dão certo. Misturar uma peixada com um lombinho de porco não é uma boa ideia. Se esses alimentos forem, por descuido, colocados no mesmo prato, a sugestão é separar. Deixar de um lado a peixada e, do outro, o lombinho. Bons cozinheiros sabem que nem sempre a mistura produz bons resultados. Às vezes o melhor é sentir o sabor de cada alimento, evitando um “desastre” no sabor da peixada e do lombinho.

A mesma coisa ocorre com a vida e o mercado. O resultado da mistura pode ser um verdadeiro desastre. A vida pode ser boa ou ruim. Viver bem é uma arte em que o pouco pode ser muito, o simples, mais do que o complexo. Com mais frequência do que se imagina, existem muitas pessoas com recursos que vivem mal. Algumas, no limite, chegam a tirar a própria vida, optando pela morte. Os índices de suicídio são altos na atualidade. A vida, antes da covid-19, já não andava em alta. Diversamente, o mercado, conforme indicavam os índices da bolsa, apresentava tendência de alta.

Foto: Ana Bia – Flickr

Por que as tendências, de baixa para a vida e de alta para o mercado, estavam crescendo, em proporção inversa, nas sociedades contemporâneas? A vida estava em baixa em razão de um resultado modesto para a soma de: dinheiro, poder, educação, saúde, beleza e idade avançada. E o mercado estava em alta quando ocorria estabilidade na política, crescimento da produção, da circulação e do consumo. Vida e mercado, especialmente em países de grande desigualdade social, são campos de tensão, exigindo a mediação do Estado.

Tanto a mistura da peixada com o lombinho como a da vida com o mercado, em geral, não dão bons resultados. Nos dois casos é melhor separar, porque as propriedades de um, ao se juntar às propriedades do outro, podem resultar em tragédia ou explosão, tanto para o paladar como para a vida dos humanos em geral.

Por quê?

Janice Theodoro da Silva é professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

O mercado seleciona (pessoas e coisas) segundo seus interesses monetários ou financeiros. Sabe o valor da vida longa (onera a Previdência), o custo das pessoas com comorbidades, também não gosta dos desocupados, tímidos e pacatos, os sensíveis, nem pensar. O mercado não busca a prudência, a justiça, não tem como objetivo o bem comum. O mercado, por sua natureza, não é campo de reflexões sobre ética ou valores morais, temas centrais quando se discute os sentidos da vida humana (covid-19).

Portanto, é importante separar as duas palavras, vida e mercado, focalizando a profunda e constante tensão existente entre elas. A vida, e seus sentidos no âmbito individual ou comunitário, a vida cidadã, depositada nas mãos do Estado, responsável pela preservação do planeta em todas as suas dimensões, exige virtudes daqueles que detêm o poder. São esses os significados (da vida) que a covid-19 trouxe à tona.

 


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