No dia 7 de agosto, o secretário adjunto de Audiovisual do Ministério do Turismo Hélio Ferraz de Oliveira surgiu às portas da Cinemateca Brasileira, localizada na Vila Clementino, zona sul de São Paulo, acompanhado de membros da Advocacia-Geral da União e de agentes da Polícia Federal. Diante de manifestantes, fotógrafos e jornalistas, executou uma espécie de reintegração de posse, na qual recebeu as chaves da instituição das mãos de Francisco Câmpera, diretor-geral da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), organização social que geria a Cinemateca desde março de 2018.
O processo de tomada das chaves – com vontades de espetáculo e classificado por Câmpera como uma violência – é apenas um dos episódios mais recentes de uma crise que atinge a instituição, ameaça seu acervo, preocupa a comunidade do audiovisual e coloca em perigo a própria existência da Cinemateca.
Em dezembro de 2019, o então ministro da Educação Abraham Weintraub encerrou o contrato estabelecido entre o governo federal e a Roquette Pinto que dava à organização social a operação da TV Escola, vigente desde a criação do canal, em 1995. Como o contrato de gestão da Cinemateca, assinado em 2018, era vinculado àquele feito com o MEC, o Ministério do Turismo – para onde a Secretaria Especial da Cultura e a Secretaria Nacional do Audiovisual foram parar, com a extinção de ministérios realizada pelo governo – decidiu tirar a Roquette Pinto do comando da Cinemateca. Os repasses de verba foram cortados, nenhum chamamento público para uma nova entidade ocupar o posto foi feito e todos os gastos de manutenção e funcionamento da instituição ficaram nas mãos da organização social.
A crise era inevitável. Funcionários ficaram sem salário, houve atrasos no pagamento das contas e as equipes terceirizadas responsáveis pela segurança foram dispensadas. Seguiram-se uma greve e uma ação judicial do Ministério Público contra a União por abandono da instituição. Da parte do governo federal, foram feitas tentativas de levar a Cinemateca para Brasília e incorporá-la à estrutura governamental e uma indicação jamais efetivada da ex-secretária de Cultura Regina Duarte para um cargo inexistente dentro do organograma.
Com a entrega das chaves em 7 de agosto, as portas da Cinemateca se fecharam. Apenas equipes de segurança e brigada de incêndio, contratadas pelo governo, povoam hoje o prédio. Assim, o maior acervo audiovisual da América do Sul, composto por 250 mil rolos de filmes e 1 milhão de documentos ligados ao cinema – como fotos, roteiros e livros -, permanece sem cuidados. Um tesouro que exige atenção constante para evitar a deterioração das películas e incêndios – ao longo do tempo, quatro já dilapidaram seus corredores, o último datando de 2016, o que torna o perigo incomodamente contemporâneo.
Para tornar a situação ainda mais dramática, em 13 de agosto a Roquette Pinto, estrangulada financeiramente, demitiu todos os funcionários especializados, que permaneceram meses na instituição trabalhando de maneira voluntária. De acordo com o Ministério do Turismo, a responsabilidade pela eventual recontratação desses funcionários é apenas da futura nova gestora.
Guardiã da memória
O papel desempenhado pela Cinemateca e os tesouros guardados em suas salas justificam as preocupações com seu futuro e a mobilização do setor audiovisual. Com origens que remontam a 1940, quando um grupo formado pelos professores da USP Paulo Emílio Sales Gomes, Antonio Candido e Décio de Almeida Prado, entre outros, fundou o primeiro Clube de Cinema de São Paulo, a instituição preserva a memória da televisão e do cinema nacionais. Dentre as cinematecas mundiais, ocupa a quinta posição em trabalhos de restauro.
Sua oficialização como Cinemateca aconteceu em 1956, quando a Filmoteca do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo se constituiu como uma sociedade civil sem fins lucrativos, desligando-se do museu. A incorporação ao poder público veio em 1984. Tornou-se então um órgão autônomo da Fundação Nacional Pró-Memória. Em seu termo de doação, ficou determinado que a Cinemateca deveria se localizar em São Paulo e que o governo estaria impedido de empregar funcionários públicos ou nomear assessores – o que tornariam ilegais a mudança para Brasília e a nomeação de Regina Duarte. A mudança para a sede atual, no antigo matadouro municipal da Vila Clementino, veio em 1988, na prefeitura de Jânio Quadros.
“A Cinemateca Brasileira é a guardiã da memória do cinema e do audiovisual brasileiros”, afirma a professora Maria Dora Mourão, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, onde leciona Teoria do Audiovisual e Montagem. “Uma parcela de seu acervo também é composta por filmes estrangeiros que fazem parte da história do cinema mundial. Além dos 250 mil rolos de filmes guardados em espaços adequadamente climatizados, há uma biblioteca especializada e um acervo de documentos fundamentais para a pesquisa na área.”
“Ela é quase um laboratório”, compara a professora de História do Audiovisual da ECA Esther Hamburger. “Se você pensar nos laboratórios da Faculdade de Medicina, do Instituto de Biociências ou do Instituto de Física, a Cinemateca é quase um laboratório para quem trabalha em pesquisa do audiovisual.” A relação de Esther com a instituição é longa e inclui a participação em um projeto de pesquisa que digitalizou 100 horas de material da extinta TV Tupi, acervo guardado na Cinemateca.
Para a docente, a atual crise atinge também a USP, tendo em vista as “relações umbilicais” entre as duas instituições. “As atividades da Cinemateca são intimamente ligadas com as atividades de ensino e pesquisa da Universidade. Sempre foram, inclusive porque um de seus fundadores é também um dos fundadores do curso de Cinema da USP, o professor Paulo Emílio Sales Gomes. Os cursos da ECA sempre contaram com filmes da Cinemateca projetados em um auditório equipado com projetores de película justamente por isso. Nós temos também muitos alunos e ex-alunos que foram estagiários lá, porque a preservação de cinema e audiovisual é uma das áreas de trabalho possíveis para os estudantes.”
Perigos do fechamento
“A inexistência de funcionários especializados, mesmo temporariamente, que verifiquem cotidianamente a situação do acervo, principalmente em relação à climatização, é um risco muito grande quando se trata de preservação de materiais audiovisuais” comenta a professora Maria Dora.
A docente explica que parte do acervo de filmes da Cinemateca possui nitrato de celulose, um material altamente inflamável utilizado no início da história do cinema, que requer atenção constante. “O acúmulo de gases emanados por esse suporte leva o material à combustão espontânea. Para que isso não aconteça, é necessário um controle rigoroso e cuidados específicos frequentes.” Em fevereiro de 2016, no último dos quatro incêndios ocorridos na Cinemateca, mais de mil rolos de filme foram destruídos. Destes, 270 eram originais sem cópias.
Para Esther, as películas dos primórdios do cinema guardadas na instituição são tão frágeis que podem ser comparadas a bombas-relógio. “A película é muito delicada, exige armazenamento em temperaturas especiais, tanto que a Cinemateca está muito bem equipada. São galpões subterrâneos com geladeiras que mantêm temperatura e condições de umidade específicas. Não se pode contar com falta de luz, desligar o ar-condicionado ou os desumidificadores.”
Não são apenas os documentos antigos que preocupam a docente. Com a rapidez dos avanços tecnológicos na área audiovisual, um fechamento prolongado da instituição poderia comprometer mesmo os itens mais recentes do acervo. “Essa parada na Cinemateca, esse caos que se instalou lá, significa que os acervos estão desassistidos. No caso dos acervos digitais, isso pode significar que eles estão ficando desatualizados. E, se você pensa em uma desatualização longa, corre-se o risco de perder o contato com esses acervos”, explica Esther.
“O acervo corre risco, sempre esteve em risco, visto que já ocorreram incêndios. Corre-se riscos sérios, porque a Cinemateca já não vem bem há tempos, ainda que as equipes que estiveram lá deveriam ser tratadas como heróis, porque conseguiram manter o barco andando”, explica o professor de Documentários e Telejornalismo da ECA Renato Levi. Para ele, que também trabalhou com o acervo da extinta TV Tupi, quando ainda era guardado pela TV Cultura, os problemas com a preservação da memória audiovisual brasileira são gerais e históricos.
“Todos os responsáveis por acervos no Brasil acabam deixando muito a desejar, porque não há recursos”, afirma Levi. “Não há pessoal, há déficits históricos nessa área e já se perdeu muita coisa. Não se registrava muita coisa na televisão por causa do custo da película. Eu trabalhei na TV Cultura e lá tinha o material da TV Tupi, que não ficava em condições apropriadas e muito se estragou. Não havia condições pessoais e materiais de botar esse acervo a salvo e disponível para quem precisasse usar”, relembra.
“Toda essa crise da Cinemateca revela uma desatenção do governo com o patrimônio que é público”, desabafa Esther Hamburger. “É o patrimônio da memória audiovisual brasileira que está depositado numa instituição pública e o governo tem a obrigação de manter esse acervo. Não está cumprindo com a sua obrigação ao colocar esse acervo em risco.”
Levi corrobora com Esther e é ainda mais incisivo. “O governo é um desastre em todos os âmbitos e nesse especialmente”, afirma. “É um governo que não liga nada para a cultura, só pensa numa visão tosca da economia, uma visão retrógrada e ultraliberal.”
Crise antiga
A extinção do contrato de gestão com a Roquette Pinto é o começo da série de incidentes que levaram ao fechamento da Cinemateca e à demissão de seus funcionários. Entretanto, na visão dos professores da USP, esse episódio também pode ser visto como apenas o início de um novo ato de um problema mais antigo.
“Para ser realista, a crise na Cinemateca tem início em 2013, quando houve, por parte do Ministério da Cultura, uma intervenção na entidade que, a meu ver, teve uma raiz puramente política”, revela Maria Dora. Segundo a professora, apesar do sucesso das ações que a Cinemateca vinha desenvolvendo, resultado de um termo de parceria assinado entre o Ministério da Cultura e a Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), que cuidava da instituição, a parceria foi interrompida de maneira intempestiva.
De acordo com Carlos Augusto Calil, professor de História do Audiovisual Brasileiro da ECA e ex-secretário de Cultura do município de São Paulo, em 2013 a então ministra da Cultura, Marta Suplicy, acolhera uma denúncia de irregularidades em despesas de projetos encomendados à SAC pelo próprio ministério e, sem apurar os fatos e responsabilidades, demitiu sumariamente o diretor da Cinemateca e não renovou o mandato de seus conselheiros.
“A Cinemateca Brasileira sofreu intervenção do Ministério da Cultura e a SAC passou três anos justificando as despesas feitas. Ao fim, nenhum desvio foi apurado e apenas irregularidades administrativas foram apontadas. A SAC ofereceu ações compensatórias, que foram executadas, mas a normalidade na Cinemateca nunca mais retornou”, relembra Calil.
Com sua capacidade de trabalho reduzida e uma jornada de deterioração em curso, tudo o que a Cinemateca fez daí em diante foi sobreviver, na visão do professor. Nem mesmo a mudança em seu modelo de gestão, com a transferência para a Roquette Pinto em 2018, possibilitou a retomada de seu vigor. “A Cinemateca foi esterilizada e conduzida burocraticamente até o final do ano passado, quando o contrato expirou”, afirma Calil.
Amigos da Cinemateca
Agora, preocupada em proteger o acervo e impedir uma tragédia semelhante à que devastou o Museu Nacional do Rio de Janeiro em 2018, a Sociedade Amigos da Cinemateca volta à cena. Após a entrega das chaves à Secretaria Nacional do Audiovisual pela Roquette Pinto, a associação se ofereceu, numa operação de emergência, para bancar os custos da instituição até que uma nova organização gestora seja contratada.
Criada em 1962, a SAC é uma associação civil sem fins lucrativos que prevê, em seu estatuto, “apoiar e fomentar o funcionamento da Cinemateca Brasileira de forma a contribuir para a defesa, conservação e promoção de seu acervo cinematográfico e audiovisual”. Além disso, coloca entre suas atribuições “desenvolver esforços que viabilizem a canalização de aportes financeiros ou de contribuições de qualquer natureza para programas e projetos de interesse da Cinemateca”.
Conforme explica a professora Maria Dora, que é diretora executiva da SAC, a associação se apresentou como uma entidade capaz de oferecer apoio operacional temporário para a Cinemateca, mobilizando recursos oriundos da sociedade civil e de instâncias do poder público. “É importante frisar que a SAC, por ser uma associação cuja existência está diretamente vinculada à Cinemateca, não pode deixar de auxiliar na medida do possível”, diz a professora.
A administração da SAC duraria aproximadamente três meses, o prazo dado pelo governo para que uma nova organização gestora seja encontrada. De acordo com Calil, os recursos públicos seriam oriundos de emendas de vereadores da cidade, conseguidos através de uma campanha capitaneada pelo vereador Gilberto Natalini. Ainda segundo o professor, o governo federal parece disposto a aceitar essa solução emergencial.
Quanto ao futuro
“Os modelos de gestão estão em questão: como é que deve ser gerida uma cinemateca? A origem é antiga e não me parece que tenha à vista uma solução que seja satisfatória”, reflete Esther.
Mesmo com a entrada da SAC em cena, o futuro da Cinemateca continua a preocupar a docente. “A SAC vai conseguir resolver o problema imediato, com a ajuda de recursos privados que estão sendo doados. E depois? Como é que vai ser a gestão desse patrimônio e, principalmente, o que me preocupa muito, qual é o futuro dos técnicos que trabalham na Cinemateca, que são técnicos muito qualificados?”
“No médio prazo”, considera Calil, “a Cinemateca precisa retomar sua autonomia operacional e política, assegurada pelas salvaguardas fixadas na escritura de doação de seu acervo ao governo federal em 1984.”
O posicionamento de Esther é similar ao do professor Calil. Para ela, o que esse histórico de crises revela é a necessidade de uma descentralização na instituição. “A Cinemateca vai muito bem enquanto a gestão está próxima das pessoas que entendem, dos técnicos que entendem do assunto.”
Levi, por sua vez, demonstra indignação com a atual postura do governo diante da Cinemateca. “Teríamos que substituir esse governo por um digno do nome, que governasse de fato e não ficasse fazendo confusão e guerras com inimigos imaginários. Tudo isso deveria ser tratado como política de Estado. O Estado brasileiro não lida bem com a cultura faz muito tempo, talvez nunca tenha lidado.”
Quanto à possibilidade de a SAC voltar a gerir a Cinemateca permanentemente, Maria Dora não levanta expectativas: “Teoricamente isso é possível, o que não significa que acontecerá”.