Bárbaros e romanos eram mais parecidos do que imaginamos

Graças a um conjunto de documentos conhecidos como leis bárbaras, os trabalhos mais recentes dos historiadores indicam que nem eram os bárbaros selvagens sanguinários, nem eram tão diferentes dos romanos

 08/05/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 25/07/2019 as 16:33
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É comum imaginar os bárbaros como invasores violentos, que saqueavam e matavam para abrir caminho à força nos territórios do Império Romano. No entanto, graças a um conjunto de documentos conhecidos como leis bárbaras, os trabalhos mais recentes dos historiadores indicam que nem eram os bárbaros selvagens sanguinários, nem eram tão diferentes dos romanos. É o que nos conta Marcelo Cândido da Silva, professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que está lançando na França um livro que procura apresentar o que há de mais inovador sobre o tema.

O livro, intitulado “Les lois barbaras. Dire le droit et le pouvoir en Occident après la disparition de l’Empire romain” (“As leis bárbaras: Dizer o direito e o poder no ocidente após o desaparecimento do Império Romano”, na tradução do organizador), é fruto de parceria de Cândido com os franceses Bruno Dumézil, da Universidade Paris IV – Paris-Sorbonne, e Sylvie Joye, da Universidade de Reims. Procura oferecer um panorama das pesquisas sobre as leis dos reinos que se consolidaram nos primeiros séculos da Idade Média.

“Durante muito tempo se acreditou que as chamadas sociedades bárbaras fossem sociedades extremamente violentas, marcadas por crimes sem punição, por assassinatos, pilhagens etc. Ora, embora essa violência existisse, ela não era tão grande quanto se imaginava até a segunda metade do século 20”, conta o historiador da USP.

O que as pesquisas mais atuais mostram é que, ao contrário da imagem que ficou no imaginário popular, bárbaros e romanos eram muito mais parecidos do que se costuma supor. Ciência USP conversou com Cândido sobre as descobertas dos historiadores que estudam as sociedades bárbaras.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

Ciência USP: Do que trata seu novo livro?
Marcelo Cândido da Silva: A ideia do livro surgiu durante uma das minhas estadias na Europa em 2009, juntamente com dois colegas que são amigos da época do doutorado e com quem realizei uma série de trabalhos em conjunto. Sylvie Joye, da Universidade de Reims, e Bruno Dumézil, da Universidade Paris IV, ambos de história medieval, como eu. Nós decidimos que era necessária uma obra que apresentasse ao público as leis bárbaras em seu conjunto. Então, nós convidamos especialistas de vários países que escrevem sobre o conjunto das leis bárbaras. Também a nossa intenção foi que o livro fosse uma espécie de instrumento de renovação historiográfica, que a gente pudesse discutir as perspectivas mais recentes da historiografia sobre o tema.

Quem são esses autores? O que eles estudam?
O livro possui textos de autores que vão escrever sobre os burgúndios, os francos, os alamanos, os visigodos… Então, a nossa intenção com esse livro foi discutir não apenas o contexto de produção das leis bárbaras, mas como eles circularam. Também pretendemos discutir qual foi o alcance, qual foi o impacto desses textos nas sociedades bárbaras a partir dos séculos 5 e 6. São textos bastante difíceis de serem analisados porque muitos deles têm uma tradição manuscrita que é recente em relação ao período medieval. Não sabemos ainda hoje exatamente qual foi a aplicação desses textos. Então, o grande desafio para nós foi discutir esse problema.

Já havia alguma obra que juntasse tantos trabalhos sobre povos diferentes?
Esse livro é o primeiro que reúne autores que vão discutir o conjunto das leis bárbaras. Há textos anteriores escritos sobre uma ou outra lei bárbara, a Lei Sálica, por exemplo, mas é a primeira vez que temos um livro sobre o conjunto desses textos.

“Eu diria que o aspecto mais importante dessas leis bárbaras é a importância que a paz possui como valor social.”

Afinal, o que são as leis bárbaras?
É um conjunto bastante heterogêneo de textos produzidos no início da Idade Média, que tratam de assuntos referentes à justiça. Elas possuem, por exemplo, normas com relação ao roubo de bens, com relação ao assassinato. O que há de característico nas leis bárbaras, no maior conjunto delas, é o fato de que, ao invés de uma punição física, elas preveem na maior parte do tempo multas, uma punição pecuniária para aqueles que praticam esses atos. São textos em latim. Todas as leis bárbaras foram escritas em latim. O período da edição, da redação das leis bárbaras vai desde o século 6 até o início do século 9. Então, é um período bastante longo. Foram compostos com o intuito de organizar a vida social e jurídica dos reinos bárbaros do ocidente, os reinos que substituíram o Império Romano, mas não apenas. Hoje, os historiadores acreditam que as leis bárbaras tinham o papel de definição das identidades dos povos que habitavam esses reinos. As leis bárbaras, além de um instrumento jurídico, são também uma espécie de instrumento de construção das identidades.

Vocês conseguem estimar a vigência dessas leis?
Sabemos que os primeiros traços da existência dessas leis são do século 3 ou 4. Há uma certa divergência entre os historiadores a esse respeito. Sabemos que elas se tornam leis reconhecidas no interior desses reinos a partir do início do século 6. O último conjunto de leis é editado no início do século 9 por Carlos Magno. Então, elas têm uma existência aí, em termos de edição, de três ou quatro séculos. Mas a vigência da Lei Sálica, por exemplo, vai muito além. Ela é retomada durante a Idade Média várias vezes como um instrumento que vai reger, por exemplo, a sucessão real. Então, muito embora esses textos sejam textos da Alta Idade Média , a influência deles sobre a Europa Ocidental vai muito além. No caso francês, pelo menos até o final da Idade Média.

Existe uma interpretação em disciplinas como o direito e a ciência política de que os povos não latinos teriam como costume uma lei oral, enquanto a tradição romana seria a da lei escrita. Vocês verificam essa distinção?
Graças às leis bárbaras nós conseguimos hoje colocar em xeque essa ideia de uma contraposição muito acentuada entre romanos e bárbaros, os romanos como sendo um povo marcado pela lei escrita e os bárbaros, pela lei oral. É que claro que a oralidade tinha um papel importante nos procedimentos judiciários na Alta Idade Média, na Idade Média em geral. As assembleias são o momento onde essa oralidade aparece. No entanto, a lei escrita tem um papel muito importante. A lei escrita é fundamental na organização dos chamados reinos bárbaros. Mas, no fundo, o que essas leis nos ajudam a entender hoje é que a contraposição entre bárbaros de um lado e romanos de outro, como sendo dois povos de características muito distintas, não funciona. Não é uma distinção que hoje em dia seja levada em conta pelos historiadores, ela é cada vez mais questionada.

Então, por que ainda chamamos esses povos de bárbaros?
Em primeiro lugar porque eles se chamavam assim. No entanto, é preciso entender que uma comunidade que se autointitula bárbara, os francos, por exemplo, é um um grupo bastante heterogêneo, que pode conter desde francos étnicos, passando por alamanos, burgúndios e, até mesmo, romanos. Sabemos que entre os povos bárbaros havia uma quantidade importante de romanos também. Na verdade, a oposição étnica entre romanos e bárbaros é em parte uma criação dos textos contemporâneos que acentuam essa distinção, mas, sobretudo, da historiografia que entre os séculos 19 e 20 construiu a história dos povos da Europa Ocidental como uma história da oposição entre bárbaros e romanos. É difícil inclusive para os arqueólogos definir precisamente qual é a fronteira exata entre um povo e outro.

Este mapa mostra as fronteiras dos reinos que estavam consolidados no ano de 476, após o desaparecimento do imperador romano do Ocidente
Este mapa mostra as fronteiras dos reinos que estavam consolidados no ano de 476, após o desaparecimento do imperador romano do Ocidente
Se situarmos esses povos bárbaros em um mapa, o que poderíamos dizer sobre eles?
O fato mais importante é que os que nós chamamos de bárbaros não chegaram de repente ao Império Romano, no final do século 5. Eles já estavam instalados nas fronteiras do império pelo menos desde o século 3. Esses bárbaros que vêm da Germânia, que vêm de outras partes da Europa e da Europa Central, por exemplo. A instalação dos povos bárbaros, em muitos dos territórios do império, nem sempre se deu de forma violenta. Deu-se muitas vezes de forma pacífica, com a autorização, com o reconhecimento do Império Romano. Esses grupos bárbaros se integraram muito rapidamente e de forma durável à sociedade romana. Então, no final do século 5, quando desaparece o imperador romano do ocidente, as elites bárbaras estão plenamente integradas à sociedade romana. A distinção, nesse sentido, é muito mais de uma autoproclamação, da tentativa de reconhecer uma certa autoridade, do que um dado de fato, um dado concreto. Sabemos que esses bárbaros são fruto de uma construção romana também. O próprio termo que indica a existência de uma autoridade política entre os bárbaros, que é o título de “Rex”, é um título de origem romana. Essas leis bárbaras são escritas em latim. Latim é a língua oficial desses reinos. Nesse sentido, os reinos bárbaros não são de forma alguma um fruto da conquista do Império Romano, mas sim de uma transformação no interior das fronteiras do Império Romano.

Poderia dar um exemplo de algo que vocês sabem sobre as sociedades bárbaras a partir do estudo dessas leis?
Umas das coisas mais importantes é a importância da paz. Durante muito tempo se acreditou que as chamadas sociedades bárbaras fossem sociedades extremamente violentas, marcadas por crimes sem punição, por assassinatos, pilhagens etc. Ora, embora essa violência existisse, ela não era tão grande quanto se imaginava até a segunda metade do século 20. O fato é que a leitura dessas leis permite entender quanto a realização da paz, a resolução de conflitos, era fundamental. O texto das leis bárbaras que se refere aos francos, por exemplo, menciona muitas vezes a importância da pacificação. Então, para essa sociedade, era muito importante que a violência, ainda que existisse, não ultrapassasse um certo limite, não ultrapassasse uma certa medida. Nesse sentido, eu diria que o aspecto mais importante dessas leis bárbaras é a importância que a paz possui como valor social.

Por que se acreditava no contrário?
A imagem que se tem dos bárbaros é a imagem da violência. É preciso entender que, no século 19, quando os estudos sobre os bárbaros tomam uma dimensão importante na Europa, para os historiadores franceses os bárbaros são os antepassados dos alemães. Oras, a partir de 1870, a partir da Guerra Franco-Prussiana, essa oposição entre franceses e alemães é fundamental. Ela marca a história europeia até 1945. A história dos bárbaros é a história da disputa entre franceses e alemães. Quando os historiadores franceses escrevem sobre os bárbaros, eles escrevem, na verdade, sobre os alemães, associando a violência alemã à violência dos bárbaros e buscando nos bárbaros a origem da violência praticada pelos alemães. Há um livro de arqueologia famoso, publicado na década de 1960, cujo autor (o francês Édouard Salin) escreve uma dedicatória ao amigo dizendo: “dedico este livros sobre as invasões bárbaras do século 5 ao meu amigo Marquês de Baye, vítima das invasões bárbaras do século 20. Então, é óbvio que nesse caso específico o arqueólogo associa os bárbaros aos alemães. E ele não é o único. A violência bárbara é também um fato dessa construção historiográfica.

É aquela coisa do trabalho do historiador dizer muito sobre o próprio historiador…
A história é em grande medida uma história contemporânea, toda ela. Nós não podemos perder de vista que quando os historiadores escrevem, eles escrevem a partir das questões que são contemporâneas (a eles). Isso não significa que esses estudos são estudos ilegítimos, (que) são estudos que não tem objetividade. Mas é preciso reconhecer o papel que a contemporaneidade tem na elaboração dos problemas, na elaboração dos temas dos historiadores.

Por Silvana Salles, do Núcleo de Divulgação Científica da USP
Imagens: Lucca Chiavone
Edição de vídeo: Isabella Yoshimura


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