Olhando os alunos, os cachorros e a vegetação lembrei de muitas histórias contadas por professores e colegas, formados na rede pública e aprovados nos vestibulares da USP. Alguns se tornaram professores de renome internacional, ganharam prêmios pelas suas conquistas em pesquisas científicas, descobriram formas de combater doenças, lutaram pela melhoria de vida dos brasileiros e do Brasil. Podia dar muitos exemplos. Resolvi escolher um professor, com quem partilhei, em 1976, o dia a dia, em Austin, Texas. Sua produção acadêmica e história de vida são marcos na sociologia brasileira.
Cassado pelo Ato Institucional n. 5, em 1968, Florestan Fernandes foi convidado, por professores de universidades americanas, para dar aulas no Estados Unidos. Richard Graham, professor da Universidade do Texas, e bom amigo, organizou um congresso para discutir problemas latino-americanos. Florestan Fernandes abriu o encontro.
Em tempo de exílio a melhor maneira de manter o ânimo para cima era jantar com os amigos e sonhar com o fim do regime militar. David Jackson, professor de literatura, estudioso e eterno apaixonado pela Pagu, Silviano Santiago, atualizado nas polêmicas literárias, e Florestan Fernandes, todos juntos, animavam as noites com discussões político-artísticas. Não lembro se o vinho era bom, provavelmente não. O dinheiro era curto. Naqueles difíceis anos 70, sentir o gosto da liberdade, assistir e comentar o filme Último Tango em Paris, proibido no Brasil, e falar sobre política era respirar liberdade e saudade da terra.
Em noite de conversa comprida, bebida e amigos sobrou louça para lavar. Resolvi deixar o trabalho, chato, de lavar os pratos, para o dia seguinte. Desmaiei na cama e não ouvi mais nada. No outro dia levantei e a cozinha estava impecável. Florestan lavou tudo antes de dormir. Culpada, diante do mestre, perguntei: por quê? Não tinha cabimento arrumar a cozinha toda, sozinho, tarde da noite.
A história rendeu uma conversa esclarecedora. Começou na infância quando ele, com 12 anos, trabalhava e dormia no emprego. Num porão. Contou sobre as baratas, o barulho que elas faziam à noite e como a louça suja chamava insetos, fazia com que elas voassem. Falou do medo e da impossibilidade de dormir com os pratos sujos, ali tão perto dele. Das baratas, dos empregos duros, da mãe lavadeira, ele foi contando, contando, com detalhes, sua vida. Lembrou como a USP tinha mudado a sua vida para sempre, a dor da cassação, o significado daquela instituição na sua vida. Narrou os desafios dos concursos, o enfrentamento com as elites, lembrou de quem o defendeu e quem não o defendeu. Foi uma longa história das alegrias e mazelas da vida acadêmica. O resultado final, somando as vantagens e defeitos da USP, era positivo e amargo (com a cassação) ao mesmo tempo. A Universidade tinha mudado definitivamente a sua vida, num país onde obter um diploma era uma das poucas maneiras de conseguir ascender socialmente. Florestan militou em defesa da escola pública ao longo de sua vida.
A Faculdade de Filosofia Ciências e Letras reunia, nos anos 40, 50, 60, professores brasileiros e estrangeiros formados nas melhores universidades europeias. Estudar física com Gleb Wataghin, antropologia com Levi-Strauss, geografia com Pierre Monbeig entre tantos outros, era um privilégio especialmente para os alunos que não podiam estudar no exterior. A USP formou muita gente. Sem a universidade não teriam conseguido pesquisar e interferir na história do Brasil, defender uma saúde pública de qualidade, pautar a imprensa, discutir projetos políticos, formando pesquisadores interessados em melhorar a história de vida dos brasileiros.
Não se pode esquecer, como diria o próprio professor Florestan, do fato de a Universidade de São Paulo reproduzir a nossa sociedade. Ela acomodava a elite, reproduzia as desigualdades e as diferenças de cor. Mas, apesar das exigências acadêmicas, a porta de entrada da instituição, da escola pública para a USP, permanecia aberta, bem aberta.
Passaram 46 anos. Hoje, entrando na USP novamente, observo o fato de o campus ter sido cercado com certa parcimônia, sem muros agressivos. Uma pequena vitória. Pelo menos não temos arames agressivos definindo fronteiras.
O que mudou? Mudou o Brasil, mudaram os brasileiros.
Entrei na Biblioteca Mindlin, prédio novo com arquitetura admirável. Pensei nos meus professores transformados em livros, enfileirados nas prateleiras. Lembrei dos amigos, das velhas histórias e comecei a comparar o passado com o presente. Melhor, pior, melhor, pior. Melhor, 2022? Pior 1970? Pior?
O presente se impôs. Em razão do trabalho na Biblioteca Mindlin pensei no vestibular USP. As portas da Universidade permaneceriam igualmente abertas? As políticas de avaliação dão conta do desafio atual?
Não sei se esta reflexão tem origem na idade, na tempestade em que vivemos hoje, ou nas mudanças das políticas educacionais. Mas confesso, tenho receio.
Explico. A razão da minha dúvida é o novo Ensino Médio, projeto com o qual debati e contribuí. As mudanças eram necessárias. O Brasil melhorou, dos anos 20 do século passado, até os dias de hoje. O Estado conseguiu, aos trancos e barrancos, colocar muitas crianças na escola. No início do século XX, 80% dos brasileiros eram analfabetos. Agora bem menos. Com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD), hoje, 41% das crianças brasileiras, de 6 e 7 anos, não sabem ler e escrever. Apesar de alguns esforços, uma alfabetização de verdade caminha com passos de tartaruga.
O número de alunos que completa o Ensino Médio em relação ao número dos que concluem o Ensino Fundamental é pequeno. Menor ainda o número de estudantes originários da escola pública que ingressam na Universidade de São Paulo. Melhorou um pouco, mas preferencialmente em determinados cursos, na área de humanidades. É patente a diferença de formação entre os alunos das boas escolas privadas e das boas escolas públicas. A defasagem é fato.
Com o novo Ensino Médio a defasagem vai diminuir? Tenho dúvidas. Explico de maneira resumida. O novo Ensino Médio, ainda em processo de implantação, a grosso modo, estabelece um número X de horas-aula para os professores, das diversas disciplinas, ensinarem os conteúdos específicos que serão avaliados em uma prova geral, para todos os alunos, indistintamente (a primeira prova no novo Enem).
As escolas determinarão também um número Y de horas-aula para os professores desenvolverem, com os estudantes, diferentes itinerários, com foco nas habilidades e competências. Poderão escolher os itinerários em razão dos professores disponíveis na escola. Bloco 1, Linguagens e suas Tecnologias + Ciências Humanas e Sociais Aplicadas; Bloco 2, Matemática e suas Tecnologias + Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Bloco 3, Matemática e suas Tecnologias + Ciências Humanas e Sociais Aplicadas; Bloco 4, Ciências da Natureza e suas Tecnologias + Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.
Os itinerários envolvem atividades onde os conteúdos podem variar, porque o essencial no projeto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é formar um aluno capaz de resolver os problemas em um mundo em transformação. Trata-se da velha história de ensinar a pescar e, não, dar apenas o peixe. Concordo com a premissa. Considero também o fato de grande parte dos alunos do Ensino Médio não pretenderem cursar faculdade, portanto, a formação necessária é para a vida.
Partindo dessa premissa, compreendo a finalidade da BNCC. Mas fica a pergunta: se o estudante tiver o desejo de realizar o vestibular na USP, as suas chances, tendo cursado o Ensino Médio em escolas públicas, aumentaram ou diminuíram? Vejo uma dificuldade maior para o aluno da escola pública. Onde? No conhecimento disciplinar.
O objeto das universidades é formar os estudantes para o ensino e para a pesquisa, para a produção e para a reprodução de conhecimento, em nível nacional e internacional. O vestibular na Universidade de São Paulo visa a selecionar alunos capazes de enfrentar esses dois desafios. Ser preparado para produzir conhecimento não é fácil. Demanda muuuuito esforço. Quer ter a medida? Basta assistir uma aula de física ou filosofia com um professor decidido a não fazer concessão. O vestibular é a primeira, entre várias provações, presentes na vida universitária na USP.
O vestibular da USP, mais distante do Enem do que o vestibular da Unicamp, exige do candidato formação disciplinar. A formação disciplinar nas escolas públicas, em geral, é precária. Faltam bons professores especialmente nas áreas de física e matemática. A consequência da defasagem educacional é o surgimento dos cursinhos preparatórios para o vestibular, desafio financeiro para as famílias de média e baixa renda.
Pelo que tenho observado são muitas as mudanças em curso no Ensino Médio, no Enem e mesmo nos vestibulares. Mas observem o cerne da questão: a relação entre o Ensino Médio e o conhecimento disciplinar avaliado no vestibular da USP.
A carga horária voltada especificamente para as disciplinas (matemática, física, química, geografia, entre outras), para as quais os municípios brasileiros (5.558) dispõem de professores formados à moda tradicional, diminuiu. Já, a carga horária voltada para os itinerários, onde prevalece o desenvolvimento das habilidades e competências, a partir de conteúdos variados, pode ter aumentado. Qual a diferença entre o aprendizado disciplinar o e o aprendizado por meio de itinerários?
Explico de forma simplificada. O primeiro “bloco horário”, chamado hipoteticamente de X, tem foco nos conteúdos disciplinares com contornos definidos. Vou ensinar geometria, Revolução Industrial ou genética. O segundo bloco, chamado de Y ou itinerários, será caracterizado por uma maior liberdade (do professor e da escola) na natureza das atividades e escolha das temáticas. O foco são as habilidades e competências. Por exemplo, organizo um itinerário voltado para o meio ambiente. Tema atual, importante de ser discutido em sala de aula. Estimulo o protagonismo, a escolha pelos próprios estudantes da problemática a ser trabalhada. Posso sugerir a montagem de vídeos com filmagens e entrevistas no entorno da escola. Posso estimular a utilização das novas linguagens e letramentos digitais envolvendo os alunos na feitura de blogs ou postagens críticas, posso envolver a turma numa discussão sobre ética ao tratar das questões indígenas. Os temas possíveis de serem trabalhados por meio de habilidades e competências são tão numerosos como os problemas que nos cercam, apesar do norte oferecido pelos currículos estarem coordenados pelas secretarias dos Estados. A minha suposição é que as escolas, por meio dos mais variados professores, poderão desenvolver atividades muito diferentes em cada uma das escolas, o que em tese é bom.
Mas como avaliar esse tipo de aprendizado no vestibular da USP?
O vestibular
Inevitavelmente, para selecionar os alunos, serão elaboradas questões específicas. Destaco a palavra selecionar e não avaliar. A seleção envolve elaboração de questões, problematizando conhecimento com raiz disciplinar, e com níveis de resolução fácil, médio e difícil, devidamente calibrados.
Os mais aptos, aprovados na seleção, serão aqueles estudantes que compreenderam e exercitaram, repetidas vezes, habilidades e competências, aplicando-as em um número variado de conteúdos, conseguindo melhor desempenho na prova. Aprenderam e treinaram leitura de gráficos com os dados, por exemplo, da covid, de população, de renda (entre dezenas de outros) cruzaram número grande de variáveis – uma, duas, três –, aperfeiçoando a leitura de gráficos e a resolução de problemas.
Os raciocínios abstratos complexos, em matemática ou em filosofia, a desconstrução e a construção das linguagens visuais, sonoras, corporais (entre outras) são fruto de aprendizado sobre conhecimentos específicos de cada uma das áreas. A leitura reflexiva sobre determinados temas, autores e objetos de conhecimento depende de aprendizado prévio mediado por um especialista-professor detentor de um conhecimento anterior, capaz de explicar para o aluno, diversas vezes e de diversas maneiras, o conteúdo que ele precisa aprender. Depois de observar um professor analisar 10 obras de arte ou mais, o estudante terá melhores condições de descrever, analisar, comparar e compreender um quadro numa visita ao museu. Existe um conhecimento especifico de física, química ou artes etc. (apropriado pelo estudante mediante o desenvolvimento de habilidades e competências) que será avaliado no vestibular.
Aqui está localizado, de acordo com a minha hipótese, o problema central. É necessário definir conteúdos com clareza, para que os alunos, tanto das escolas públicas como privadas, possam estudar conteúdos semelhantes e disputar o vestibular de forma mais equilibrada respondendo o desafio proposto.
Quanto mais indefinidos são os conteúdos mais elitizada é a disputa. A interiorização do conhecimento para que se possa transferir o conceito de um objeto de conhecimento para outro é lento e difícil. Analisar, discutir e compreender, por exemplo, o conceito de tempo na física, na história e na narrativa, é uma longa viagem em termos de complexidade.
Os letramentos, discussão de fundo na BNCC, envolvem domínio e manipulação de diversas linguagens e conceitos ao mesmo tempo. Um aprendizado de tamanha complexidade exige professores muito preparados e conteúdos razoavelmente definidos para que os alunos, com histórias de vida desiguais, possam ter conhecido e refletido (por meio de habilidades e competências), repetidas vezes, uma determinada cadeia de problemas ou temáticas específicas, possíveis de avaliação posterior.
A seleção dos alunos no vestibular da USP caminhará em direção ao equilíbrio e à justiça com todos os estudantes, se explicitar com clareza os conteúdos, nas diferentes áreas de conhecimento, esclarecendo o grau de dificuldade com que diferentes temáticas serão abordadas no vestibular. É cedo ainda para avaliar. Posso estar certa, ou posso estar errada. O tempo dirá. Os velhos marinheiros olham o mar com mais cuidado. Observem a conjuntura: ela é delicada e perigosa. O mar está muito agitado.
Em nome de outros jovens Florestans, estudantes do Ensino Médio e da escola pública, vamos cuidar para a USP permanecer, sempre, de portas abertas, bem abertas.