A malária volta a assustar o Brasil. O que a Universidade tem com isso?

Marcelo Urbano Ferreira é médico e professor do Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biomédicas

 19/07/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 22/11/2018 as 7:35

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Marcelo Urbano Ferreira – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Depois de quase uma década de constante progresso no controle da malária, o Brasil volta a registrar aumento expressivo do número de casos. Até recentemente, tudo parecia caminhar bem. Em novembro de 2015, o Ministério da Saúde havia lançado o Plano para a Eliminação da Malária no Brasil, com o objetivo de curto prazo de interromper até 2030 a transmissão de Plasmodium falciparum, a espécie de parasito da malária que causa a doença potencialmente mais grave. A medida é coerente com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável lançados pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2015, tendo como meta de redução do número global de casos em pelo menos 90% em 15 anos e a eliminação da malária em pelo menos 35 países.

A natureza focal da malária no Brasil permitia antever sua eliminação a partir da priorização de um número relativamente limitado de focos de transmissão mais intensa, situados exclusivamente na Amazônia Legal. Do total de casos registrados, cerca de 20% concentravam-se em quatro municípios do Vale do Alto Juruá, entre o Acre e o sul do Amazonas, junto à fronteira com o Peru. No ano seguinte, 2016, foram notificados cerca de 129.000 casos de malária no País, o menor número aqui em 37 anos.

Entretanto, chegamos ao final de 2017 com mais de 193.000 casos notificados, um aumento de quase 50% em relação ao ano anterior. No estado do Pará, por exemplo, observou-se aumento de mais de 150%, passando de 14.495 casos em 2016 para 36.678 em 2017. Além do Brasil, Equador, México, Nicarágua e Venezuela tiveram um aumento expressivo do número de casos diagnosticados em 2017, de acordo com dados compilados pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), que emitiu diversos alertas a esses países nos dois últimos anos. E as projeções para o Brasil em 2018 tampouco dão margem a otimismo. No estado do Amazonas, por exemplo, são quase 19 mil casos de malária no primeiro trimestre deste ano, um aumento de 34% em relação ao mesmo período de 2017. Em Roraima, já são 5.750 casos confirmados somente entre janeiro e março de 2018, comparados a pouco mais de 14.000 em todo o ano de 2017 e menos de 9.000 casos ao longo de 2016. Este é o quadro amplamente divulgado, no Brasil e no exterior, durante o Dia Mundial da Malária, celebrado em 25 de abril último.

Por que essa realidade da Amazônia distante diz respeito à USP? Em primeiro lugar, a USP tem uma longa tradição de cooperação técnica, com o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais e municipais de saúde, no controle da malária. Com outras universidades e institutos de pesquisa, muitos deles situados na própria Amazônia, a USP vem monitorando a eficácia de medicamentos atualmente utilizados no tratamento da malária, desenvolvendo e avaliando novas estratégias de identificação de indivíduos infectados, independentemente da presença de sintomas, e propondo soluções inovadoras para o controle dos mosquitos transmissores da infecção.

Em quinze anos de pesquisa de campo no estado do Acre, combinamos estudos epidemiológicos populacionais, ensaios clínicos e investigação imunológica, genética e genômica para elucidar os fatores associados à transmissão da malária em assentamentos agrícolas de fronteira e propor intervenções mais apropriadas a esse contexto. Mais recentemente, concentramos nossas atividades no Vale do Alto Juruá, o principal foco de malária residual no País, em que persistem bolsões de transmissão não somente em áreas rurais, mais remotas, como também nas próprias cidades e comunidades periurbanas. A USP é uma parceira estratégica do Programa Nacional de Controle da Malária do Ministério da Saúde para a definição e avaliação de políticas de controle e uma interlocutora frequente dos gestores, em nível estadual e municipal, envolvidos em sua implementação. Em suma, o sucesso no controle de malária no País, em anos recentes, teve a decisiva participação da USP.

Chegamos ao final de 2017 com mais de 193.000 casos notificados, um aumento de quase 50% em relação ao ano anterior. No estado do Pará, por exemplo, observou-se aumento de mais de 150%, passando de 14.495 casos em 2016 para 36.678 em 2017.

Em segundo lugar, cabe à USP investigar as causas do aumento recente do número de casos de malária no País e propor medidas que permitam reverter essa tendência. Os dados disponíveis não implicam algum fator biológico — como, por exemplo, o desenvolvimento de resistência dos parasitos aos medicamentos antimaláricos ou o efeito de mudanças climáticas drásticas na proliferação dos mosquitos vetores — como determinante da explosão dos casos de malária em 2017. A explicação parece estar na desarticulação e no subfinanciamento do programa de controle em nível federal, nos estados e municípios.

Tradicionalmente, desde as primeiras décadas do século passado, o controle da malária no Brasil foi executado pelo governo federal, com base em um programa centralizado e verticalizado. Com a criação do SUS, os estados e, posteriormente, os municípios foram progressivamente assumindo as tarefas de diagnosticar e tratar os casos de malária e de aplicar medidas de controle de vetores, como a borrifação dos domicílios de áreas endêmicas, com inseticidas de efeito duradouro, e a distribuição de mosquiteiros impregnados com inseticidas para as populações mais expostas ao risco. O ideal é que essas medidas sejam incorporadas na estratégia de saúde da família dos municípios. Esse é um processo longo, que exige a capacitação de gestores municipais, o suporte técnico e logístico contínuos e a transferência de recursos financeiros federais.

Aqui reside o principal problema: passamos de 72 milhões de dólares de investimento no controle de malária em 2014 para pouco mais de 44 milhões de dólares em 2016, segundo dados publicados pela Organização Mundial da Saúde no final de 2017. Trata-se de uma redução de 39% até o final de 2016, com perspectiva de queda ainda maior nos anos seguintes, após a aprovação da emenda constitucional que congela por duas décadas os gastos públicos federais. O Programa Nacional de Controle da Malária também perdeu recursos humanos, com a demissão de profissionais altamente capacitados, gerando grande impacto no planejamento e na supervisão das ações de controle em escala nacional. Os municípios amazônicos, por sua vez, com sua arrecadação dizimada pela crise econômica, não dispõem dos recursos financeiros e humanos exigidos para enfrentar a malária. Agravando o quadro social, esses municípios veem-se em meio a violentas disputas entre facções criminosas, em busca do domínio das rotas de tráfico de drogas pelos grandes rios da região. A violência chega a impedir o acesso das equipes de saúde a áreas críticas dos municípios mais afetados. Finalmente, a chegada de milhares de refugiados venezuelanos a Roraima, provenientes de áreas com intensa transmissão de malária em seu país, sobrecarrega as equipes de saúde locais.

Esse panorama traz novos desafios ao pesquisador biomédico. Não basta desenvolver novos medicamentos ou testes diagnósticos, por exemplo, para vencer a crise atual. Esta não se deve a fatores que enfrentamos com soluções criadas em nossos laboratórios, como o desenvolvimento e aprimoramento de produtos e processos tecnológicos. Os meios atualmente disponíveis para o combate à malária não são perfeitos, mas o que vemos agora é a incapacidade de utilizar plenamente o que já existe. Como parceiros para a construção de políticas de saúde pública no Brasil, temos a tarefa, acima de tudo política, de defender a retomada dos investimentos e o constante diálogo entre gestores e pesquisadores, para recuperar o terreno perdido e evitar um desastre maior.

Cabe-nos constatar os efeitos devastadores do controverso processo de impeachment, desencadeado em abril de 2016, no combate às doenças tropicais negligenciadas, que afetam predominantemente as populações pobres de áreas rurais. Enquanto as universidades brasileiras, incluindo a USP, se debruçam sobre suas causas e suas consequências políticas e econômicas, com o oferecimento de cursos acadêmicos sobre o Golpe de 2016, os pesquisadores da área de saúde têm diante de si um exemplo didático, a ser lembrado nas próximas décadas, do impacto desse golpe no controle de uma doença infecciosa que contribui decisivamente para a manutenção das desigualdades regionais no País.

Leia mais sobre o Projeto Temático da Fapesp que o professor Marcelo Urbano coordena em Mâncio Lima, no Acre, nos links abaixo


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