A decisão en las manos de nuestros hermanos

Por Luiz Roberto Serrano, jornalista e coordenador editorial da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP

 26/10/2023 - Publicado há 7 meses     Atualizado: 30/10/2023 as 18:45

Escrevo este artigo ouvindo Years of Solitude e Adios Nonino, de Astor Piazzola. Years of Solitude é um clássico, Adios Nonino também, mas, além de tudo, me faz lembrar de mi nonino, Juan Manuel, o argentino mais brasileiro que conheci. São inspirações que me alimentam o espírito enquanto correm os dias que nos levam para o segundo turno das eleições argentinas. Eleições de suma importância, que vão definir o papel da Argentina nesta sofrida América do Sul e suas relações quase carnais com este Brasil.

O resultado do primeiro turno contrariou quase todas as pesquisas que apontavam o chamado libertário e defensor de ideias exóticas, Javier Milei, do partido La Libertad Avanza, como provável vencedor, por ter a simpatia da maioria dos que eram contra o peronismo, que tem enorme presença na Argentina desde a década de 1940.

Com forte presença nas pesquisas, também corria a conservadora Patricia Bullrich, do Juntos por el Cambio, com trajetória errática na política argentina, atualmente mais à direita, ocupando o segundo ou o terceiro lugar nas enquetes.

Nas pesquisas, o peronista moderado Sérgio Massa, da coligação Union por La Patria, atual ministro da Fazenda de um país em que a inflação descontrolada há muito ultrapassou os 100% ao ano, variava entre o segundo ou o terceiro lugares. E tinha ficado em terceiro lugar nas tradicionais PASO, uma prévia eleitoral oficial argentina que se realiza pouco antes da votação.

Como todos acompanhamos, ao contrário de todas e mais algumas expectativas, com a assessoria de experimentados publicitários brasileiros, Sérgio Massa, surpreendentemente, levou o primeiro turno, com 36,5% dos votos. Milei, defensor de uma nova dolarização no país, a favor da extinção do Banco Central, contra o ensino público, y otras cositas más, 30,5%. Bullrich correu para manifestar apoio a Milei no segundo turno, junto com o ex-presidente Maurício Macri, mas seu grupo político explodiu, pois nomes importantes de seu partido preferem se declarar neutros para a nova disputa, assim como outros importantes políticos do país.

O resultado deste primeiro turno embaralhou os prognósticos para as eleições em que o fenômeno Milei, apesar de todas as esquisitices e estranhas propostas, parecia a caminho da vitória – e voltou a abrir possibilidades de protagonismo ao peronismo que acumulou um sem-número de problemas no mandato que se finda de Alberto Fernandez, que passou a maior parte de seu tempo na Casa Rosada em constantes brigas e discordâncias com a vice-presidente Cristina Kirchner.

Quando nasci, o general Perón já estava na Casa Rosada, na companhia da carismática Evita, sua esposa, que caiu na adoração das classes baixas argentinas, sentimento que jamais perderam, mesmo depois de sua morte, por câncer, em 1952. Sem ela ao seu lado, Perón, em seu segundo mandato, foi derrubado três anos depois e partiu para o exílio. Depois de um périplo pelas Américas, Madri, capital da Espanha, do ditador direitista Francisco Franco, o acolheu. E de lá Perón manipulou o peronismo, até que os militares argentinos, autores de golpes atrás de golpes, convenceram-se de que sem ele o país era ingovernável. Perón foi reeleito em setembro de 1973 e faleceu em julho de 1974, deixando um peronismo fraturado em divisões da esquerda à direita.

O fato, determinante até hoje, é que o peronismo continuou vivo e forte, às vezes com denominações paralelas, como o atual kirchnerismo, ocupando o governo argentino em várias ocasiões, ganhando e perdendo eleições. Com poucas exceções, nesse período a Argentina conviveu e convive com economias problemáticas e em crise, assistiu a significativo êxodo dos nascidos na terra e enfrenta, hoje, um momento muito frágil e delicado. Mais de 40% da população vive na linha de pobreza. “Argentinos ficam sem gasolina por falta de dólar”, dizia o título de reportagem do jornal Valor Econômico, nesta quinta-feira passada.

Definitivamente, o estado de coisas não pode ficar do jeito que está em terras portenhas. O grande desafio para o futuro próximo governo é relançar a economia argentina, fazendo-a recuperar o vigor possível, um pouco todo dia, mas mirar, a longo prazo, o país e a sociedade que ela já foi.

Depois de ser um dos celeiros do mundo, principalmente voltado para a Europa, e conquistar uma indústria que crescia como a brasileira (esta não cresce mais, também), ter experimentado exotismos como a dolarização (que Milei quer trazer de volta), nosso vizinho precisa reencontrar o rumo. Será bom para o Brasil, especialmente se puderem trabalhar juntos, e para toda a América do Sul.

A decisão estará en las manos de nuestros hermanos.

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