Torres acadêmicas – parte 3/3

Por Guilherme Ary Plonski, professor da Escola Politécnica e da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA), ambas da USP

 20/07/2023 - Publicado há 10 meses     Atualizado: 21/07/2023 as 17:35

Surpreende encontrar nos aforismos de Confúcio (551-479 AEC), reunidos após o seu falecimento num texto apropriadamente denominado Os analectos, uma máxima dedicada à retificação de nomes. Segue o diálogo específico (extraído da versão em português editada pela L&PM Editores):

Tzu-lu disse: “Se o senhor de Wei o encarregasse da administração do estado, o que o senhor faria primeiro?”.

O Mestre disse: “Se algo tem de ser feito primeiro, é, talvez, a retificação dos nomes”.

Tzu-lu disse: “É mesmo? Que caminho indireto o Mestre toma! Para que tratar da retificação?”.

O Mestre disse: “Yu, como você é atrapalhado. Espera-se que um cavalheiro não ofereça nenhuma opinião sobre aquilo que desconhece. Quando os nomes não são corretos, o que é dito não soará razoável; quando o que é dito não soa razoável, os negócios não culminarão em sucesso e ritos e músicas não florescerão; quando ritos e música não florescerem, a punição não encerrará os crimes; quando a punição não encerrar os crimes, o povo ficará desanimado.

Assim, quando o cavalheiro nomeia algo, o nome com certeza terá uma função no seu discurso, e, quando ele disser algo, com certeza será algo passível de ser colocado em prática. Um cavalheiro é tudo menos casual quando se trata de linguagem”.

Desanimados poderíamos ficar nós, membros da comunidade universitária, ao continuarmos sendo associados à “torre de marfim”, um nome patentemente incorreto e, ademais, sugestivo de que infringimos sistematicamente dispositivos legais ou regulamentares. Pois essa construção estapafúrdia, se existisse, precisaria utilizar material banido pela Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites), assinada pelo Brasil em 1975. (Qualquer semelhança com a afirmação de recente ex-Ministro da Educação, igualmente estapafúrdia, de que as universidades brasileiras são antros de drogas ilegais não é mera coincidência).

A busca de uma representação simbólica digna para a universidade pode seguir dois rumos. Aproveitando a terminologia consagrada no ambiente da inovação, podemos ter uma mudança incremental, que mantém a imagem da torre e substitui o qualificativo ebúrneo, ou uma transformação radical, em que se busca criar uma imagem significativamente diferente da atual.

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Torres acadêmicas – parte 2/3

Torres acadêmicas – parte 1/3

A mudança incremental se beneficia da presença quase ubíqua de torres em campi acadêmicos, como evidencia a própria Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira da USP. A Torre do Relógio ali existente também protagoniza a presença da Universidade no ciberespaço. O prestígio dessas construções pode ser aquilatado pela existência de rankings dedicados às torres universitárias, como os publicados pelos sites Wonkhe e Wonderlist. Eles apresentam resultados divergentes, devido à diferença de critérios. (Qualquer semelhança com as discrepâncias surpreendentes entre os ranqueamentos universitários disponíveis no mercado não é mera coincidência).

Uma mudança incremental atraente é sugerida pelo livro publicado em 2019 por dois docentes da Universidade Hebraica de Jerusalém, cujo título traduzido seria Farol ou Torre de Marfim: a Academia israelense: entre abertura desafiadora e seclusão defensiva. O detalhe importante é que, no idioma hebraico em que foi elaborado o texto, há uma similitude entre os termos “farol” (migdalor) e “torre de marfim” (migdal shen), onde a palavra migdal corresponde a “torre”, enquanto or e shen são, respectivamente, “luz” e “marfim”. Não é esse o único idioma em que o farol recebe uma denominação descritiva: em alemão o termo é idêntico ao hebraico, a saber, Leuchtturm, onde Turm é “torre” e Leucht se refere a “luz”. O Leuchtturm se contrapõe ao Elfenbeinturm, que designa a ‘torre de marfim’ naquele idioma.

O termo “farol” em português, assim como o seu equivalente em espanhol “faro”, alude a Faros, nome da ilha egípcia onde foi erigido o Farol de Alexandria, uma das maravilhas do mundo antigo. Ainda que sem a sonoridade do hebraico e do alemão, a ideia da universidade como farol é atraente. Como os faróis, a universidade frequentemente está situada fisicamente em lugares ermos, que sugerem introversão. Mas, como os faróis, peculiares torres cuja parte superior contém um foco luminoso, geralmente giratório, que espalha luz para orientar os navegantes, a universidade dissemina informações orientativas.

Essas informações qualificadas proporcionam elementos vitais para ajudar pessoas e coletivos a singrar os mares da vida real, ajudando-os a descobrir novas paragens e a superar os efeitos das tempestades. A universidade o faz por canais diversos – cursos para formar estudantes; relatórios de estudos que contribuem para o aprimoramento de políticas públicas; publicações acadêmicas que expressam os resultados de pesquisas capazes de inspirar a construção de soluções inovadoras para as múltiplas necessidades da sociedade; produções artísticas e atividades de cunho cultural que expandem horizontes e possibilidades humanas – a variedade de formas está em permanente expansão.

Todavia, variados argumentos recomendam buscar representações da universidade que dispensam a presença de qualquer espécie de torre, dentre eles os seguintes:

• A universidade ocidental é uma instituição próxima de completar um milênio A principal finalidade prática da existência de uma torre no campus acadêmico ao longo dos primeiros séculos era sincronizar a presença de estudantes e docentes nas salas programadas, de forma a minimizar o intervalo entre uma aula e a seguinte; esse era um desafio real, pois, ao contrário de escolas do ensino básico, geralmente situadas num mesmo edifício, os prédios de uma universidade estavam habitualmente espalhados. A solução encontrada era badalar sinos no alto da torre quinze minutos antes do início e do final dos horários letivos. Essa questão está superada há bastante tempo pelos avanços tecnológicos que levaram à popularização dos relógios de uso pessoal.

• Outra finalidade prática importante da torre nos campi medievais era a de orientar a chegada de estudantes e visitantes, uma vez que as universidades se localizavam fora das cidades. Convenhamos que os avanços tecnológicos na geolocalização, via GPS ou similares, dispensam a torre como marco geográfico.

• Nos modelos de universidades em que cresce a presença de ambientes virtuais, digitais, metapresenciais ou afins, ter como símbolo uma torre é algo no mínimo anacrônico.

• No espírito do tempo presente, está depreciado o próprio valor simbólico da torre como indicativo de “santuário do saber” (inspirado nos templos medievais), de prestígio do ensino dito “superior” (talvez inspirado na mítica Torre de Babel), de hierarquia acadêmica rígida (exemplificado pela cátedras históricas), ou de anteparo para proteger a universidade de ataques, quer físicos (desde os violentos conflitos town and gown) como políticos (os profusos ataques à liberdade acadêmica que continuam até a atualidade).

A argumentação acima não é indicativa de que torres acadêmicas existentes são obsoletas e, em decorrência, poderiam ser demolidas, utilizando-se o espaço para outras finalidades. Devem ser preservadas, quando tiverem valor histórico ou estético. Também deve ser considerado o fato de que algumas universidades têm sido capazes de dar novas funções nobres para essas construções.

É o caso da icônica torre da Universidade de Cambridge, transformada em biblioteca, cuja Coleção da Torre é “a caverna de Aladim dos amantes de livros e historiadores”.

É, também, o caso da cinquentenária Torre do Relógio da USP, cuja importância maior não está no alto (o relógio, marcador do tempo fugaz), mas na sua base, em que consta uma divisa da USP complementar à “Vencerás pela Ciência” que está no seu brasão. Registrada em pedra para ser perene, está a orientação de que “No Universo da Cultura o centro está em toda parte”.

Como buscar uma mudança radical para simbolizar a universidade, ou seja, uma metáfora que prescinda de torres? Essa questão será explorada em próximo artigo neste generoso espaço concedido pelo Jornal da USP.

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