Torres acadêmicas – parte 1/3

Por Guilherme Ary Plonski, professor da Escola Politécnica e da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA), ambas da USP

 31/03/2023 - Publicado há 12 meses

Fomos apresentados nos bancos escolares às chamadas Sete Maravilhas do Mundo Antigo: a Grande Pirâmide de Gizé, o Mausoléu de Halicarnasso, o Templo de Ártemis, a Estátua de Zeus, o Colosso de Rodes, o Farol de Alexandria e os Jardins Suspensos da Babilônia. Esses feitos notáveis se tornaram conhecidos e reconhecidos em virtude da capacidade de civilizações radicadas em torno do Mar Mediterrâneo de concluir as respectivas obras, todas elas arrojadas, com os limitados recursos disponíveis à época (com a ressalva de que pairam dúvidas sobre a existência da sétima “maravilha”).

Provavelmente está também registrada em algum escaninho da memória dos generosos leitores deste texto outra obra arrojada, igualmente remota no tempo e no espaço, mas que se notabiliza justamente pelo fato inusitado de não ter sido completada. Trata-se de uma torre, ou seja, de uma estrutura relativamente alta em proporção à dimensão de sua base, conhecida como a Torre de Babel (local que corresponde à Babilônia nos idiomas hebraico e aramaico). A descrição bíblica a singulariza por integrar uma iniciativa monumental: edificar uma cidade marcada por uma torre imensa, cujo cume alcançasse o céu, o que traria fama aos seus moradores.

O relato posiciona essa torre na Mesopotâmia, região em que, na Antiguidade, abundavam as ziggurats, construções piramidais maciças de cunho religioso, cujo topo serviria de morada para as divindades cultuadas localmente. Da natureza sagrada dessas edificações decorria a limitação estrita de entrada, que era permitida apenas a sacerdotes e a pessoas leigas de destaque nas respectivas sociedades. (Qualquer semelhança com as barreiras de acesso a torres luxuosas em nossos dias não é mera coincidência.)

A curta e fascinante narrativa da construção da Torre de Babel termina de forma inesperada: a paralisação definitiva da obra durante o seu andamento. A causa da debacle, igualmente surpreendente, é a confusão causada pelo súbito embaralhamento das línguas faladas pelos construtores, os quais acabam sendo dispersados.

A inclusão no cânone desse mito tem uma finalidade moral explícita: chamar a atenção para a necessidade de refrear os projetos desmedidos, frutos da arrogância coletiva. Pois a realização desses empreendimentos suscita nos seus promotores a sensação de onipotência, que é capaz de gerar consequências nefastas para a sociedade humana. (Qualquer semelhança com as consequências trágicas da inextinguível húbris nacionalista não é mera coincidência.)

O caráter enigmático dessa parábola tem estimulado numerosas e variadas interpretações ao longo dos séculos. Em termos contemporâneos, ela pode ser compreendida como um alerta para o lado sombrio de tecnologias ambiciosas, quando desenvolvidas sem o imprescindível cuidado com os seres humanos por elas afetados, direta ou indiretamente. Esse entendimento é suportado por um conto exegético, ao mesmo tempo singelo e pungente. Segundo ele, as pessoas de então não se incomodavam quando um dos construtores despencava da Torre de Babel em obras, vindo a falecer; em contrapartida, essas pessoas lamentavam a eventual queda de um tijolo do alto, pelo atraso que acarretava para o cronograma da obra. (Qualquer semelhança com a canção Construção, de Chico Buarque, não é mera coincidência.)

Diversas torres efetivamente edificadas ao longo da história humana mais recente também se tornaram simbólicas. As torres de Belém (Portugal), de Londres (Reino Unido), de Hércules (Espanha) e da Donzela (Azerbaijão) são patrimônio da humanidade, segundo a indicação da Unesco. A Torre Eiffel é o ícone cultural global da França. A torre inclinada de Pisa é uma referência inspiradora da sobrevivência improvável, pois se mantém apesar dos pelo menos quatro terremotos intensos pelos quais passou.

Torres também fazem parte da paisagem de campi acadêmicos. Na praça central da Cidade Universitária da USP na Capital, por exemplo, destaca-se há exatos cinquenta anos a Torre do Relógio. Contudo, a associação mental mais comum de uma universidade com uma torre desemboca na Torre de Marfim, uma edificação que nunca existiu fisicamente. Mas que subsiste na cultura humana, como evidenciam os quase cinco milhões de referências à expressão “Ivory Tower” no buscador Google.

Como nos foi atribuído esse qualificador exótico?

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