Reflexões sobre a accountability como parte da gestão das organizações

Por Fábio Frezatti, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

 17/10/2023 - Publicado há 7 meses

Quando tratamos um problema, é fundamental especificar a abrangência do que precisamos para tratá-lo. No ambiente da gestão, indicamos a visão sistêmica, o que significa dizer: qual a fronteira que precisamos ter em mente para entender, tratar, decidir e acompanhar as ocorrências? Escolhi a relação entre accountability e a gestão como foco de reflexão, e o que proponho como problema é que a primeira seja parte integrante da segunda, no lugar de tema independente, que é o que tenho observado na prática.

As organizações necessitam de resultados. As pessoas precisam de resultados nos seus ambientes organizacionais como parte das etapas de desenvolvimento de suas vidas, sendo que a relação é intrincada entre resultados das pessoas e das organizações. Não se trata de atingir os resultados apenas, mas fazer isso de forma inovadora e eficiente. Caso contrário, o conceito de sustentabilidade não passa de retórica nas organizações.

Entre processos e entregas, em situações mais comuns, o que vale é o resultado para a jornada dos gestores. Existem muitos discursos sobre os processos, mas o que realmente vale são os resultados. Sem eles, os múltiplos agentes não querem saber da eficiência dos processos, e a inovação e a eficiência deixam de ser percebidas, afetando a avaliação da pessoa, do grupo e mesmo da organização. Os resultados planejados são identificados e servem de base para aceitação ou não de um plano. Para atingir os resultados, os gestores desenvolvem planos, envolvem pessoas, identificam recursos e trabalham para fazer acontecer o que planejaram.

Obter resultados a qualquer preço não faz sentido, e se isso não for percebido a curto prazo fatalmente será no longo prazo e a avaliação ex-post será bem complicada. Planejamento não é sinônimo de adivinhação, mas um conjunto de decisões de quem, indivíduo ou grupo, pode zelar pela sua execução, a partir do qual dedica energia para a que as decisões se tornem realidade. Não existe mundo perfeito e determinístico para que o que foi planejado vire realidade só por vontade. São necessários muito esforço, apoio técnico, apoio político grupal e razoável capacidade de coordenação para realizar o que foi decidido.

Do ponto de vista do gestor, além de evidenciar capacidade e eficiência, é fundamental evidenciar idoneidade. É muito importante ser lembrado no curto, médio e longo prazos, como alguém que constrói, que empreende, que tem contribuições internas e, principalmente, externas, implicando lidar com diferentes agentes e mecanismos. O mundo do gestor demanda constante cuidado e adaptação frente aos cenários e riscos, na dosagem entre a atenção para a “manutenção da máquina” e o quanto de inovação seja viável. Pura gestão de risco na coerência e capacidade de implementar decisões dentro de um horizonte de tempo.

Uma vez entendido e definido o que deve ser feito, é possível pensar na prestação de contas, desde o planejamento das ações. Em ambientes de grande volatilidade, existe a demanda por atualizações e ajustes, inclusive trazendo novas ações que se referem ao que deve ser feito, com diferentes perspectivas de risco, e nem sempre as justificativas são possíveis de ser evidenciadas e entendidas pelos múltiplos interlocutores.

Quando pensamos nas duas partes da accountability, ou seja, fazer o que deve ser feito e prestar contas, com transparência, seria de se esperar uma estrutura para que o que deve ser feito tenha chance de sucesso e que exista algum tipo de reconhecimento, seja monetário, de evolução na carreira ou mesmo algo simbólico. Dessa maneira podemos perceber a accountability com fechos parciais e finais, de gestão, com vários prazos de ocorrência como ingrediente estruturado a partir do pacote de governança.

Ao tratar a gestão, uma vez estabelecido o que deve ser feito, surge a lógica da accountability, conceito tratado por vários pensadores, entre os quais escolhi Giddens e sua forma de entender o tema. Ele abordou a questão da accountability como a responsabilização e a prestação de contas, focando as lentes da política e da democracia. O autor acredita que, em uma sociedade democrática, os cidadãos devem ter poder e mecanismos para responsabilizar seus representantes e líderes políticos pelo cumprimento de suas promessas e pelo exercício do poder de forma responsável. Isso envolve não apenas a responsabilização, mas também a transparência com possibilidade de avaliação pública e a participação ativa dos cidadãos no processo político. Nessas condições, os gestores podem ser confrontados, inclusive juridicamente, mas não necessariamente reconhecidos pelo desempenho. Consequentemente, de forma isolada, os mecanismos de accountability são percebidos exclusivamente como instrumentos para eventual punição e não para avaliar e reforçar o modelo de gestão, o que seria o caso.

A lógica de Giddens tende a nos fazer acreditar que a accountability, se tem prazo de validade jurídica, não tem prazo de validade de imagem e/ou moral e que na relativização do contexto o desempenho em si possa ser esquecido ou pouco percebido. Vários estudos são disponíveis para tratar o tema. Pollitt o tratou no contexto da área pública, a importância de estruturas e sistemas que permitam que os agentes públicos sejam responsáveis por suas ações. Bovens lidou com o “tripartite accountability“, que considera a accountability horizontal (entre organizações), vertical (para cima e para baixo nas hierarquias organizacionais) e diagonal (para partes interessadas externas). Por sua vez, Behn explora a accountability no contexto da gestão pública, insistindo na necessidade de definir claramente os resultados esperados e medir o desempenho para responsabilização, o que proporciona alinhamento com a visão de planejamento como antecedente.

Muito embora o conceito de accountability no seu nascedouro se aplique à sociedade em termos abrangentes, temos adaptado o termo numa unidade de análise menor, a das organizações, sejam públicas ou privadas. O que faz sentido para a sociedade, faz sentido de forma adaptada para as organizações, já que fazem parte da sociedade.

No setor privado, os agentes internos são definidos por uma lógica de demanda para o desempenho da organização e as mudanças de cenário podem ser percebidas de maneira razoavelmente homogênea pelos agentes, além de estabilidade de participação dos mesmos. A lógica de poder é relativamente estável e os agentes (stakeholders identificados por Friedman) são conhecidos a priori. Também no que se refere a quem deve prestar contas, normalmente existe na organização estruturação hierárquica coordenada para que tanto o planejamento como a prestação de contas ocorram nos vários níveis. Elementos da cultura interna podem direcionar o entendimento e julgamento das ações e a accountability acaba ocorrendo ao longo do tempo. Em síntese, existe uma adaptação ajustada pela demanda das empresas, inclusive com interpretações próprias, razoavelmente distantes da literatura seminal.

No setor público, aqui sem particularizar os diferentes órgãos, os agentes (stakeholders) são múltiplos e com necessidades, interesses e engajamentos distintos. Esses agentes podem ser os beneficiários das organizações públicas, os órgãos reguladores, órgãos fiscalizadores, responsáveis pelos órgãos e/ou organizações, fornecedores de recursos e mesmo concorrentes, com distintos interesses e engajamentos em relação às organizações e às ideologias. Uma questão importante é que os vários agentes (stakeholders) se “tornam presentes” em momentos diferentes, sendo alguns no momento do planejamento, outros na execução, alguns na prestação de contas e alguns em todos os momentos. Isso demanda do gestor capacidade de comunicar coisas iguais de diferentes formas, e diferentes intensidades para diferentes agentes.

A ênfase na responsabilização e na prestação de contas atende a um anseio para assegurar o aperfeiçoamento de sistemas, seja pelas questões de comprovação de capacidade e eficiência, como enfrentar e evidenciar quando for o caso, as fraudes, os comportamentos ilegais ou mesmo imorais.

Quando voltamos para o setor público, a lógica da prestação de contas e apuração de responsabilidade é a única coisa apresentada aos gestores, sem que a eficiência e inovação propriamente ditas sejam percebidas como fundamentais e não existem elementos que encorajem e estimulem os gestores a correr riscos. Como aperfeiçoamento do processo de gestão, é relevante o avanço nos mecanismos formais, estruturados, de preparação dos gestores, entre os quais uma grande parte não nasceu sonhando em ser gestor, na especificação e operacionalização do que significa desempenho da organização e das pessoas, bem como aperfeiçoamento contínuo do sistema de indicadores que possam trazer estabilidade, direcionamento de longo prazo e legitimidade ao processo de comunicação. Acredito que é o mínimo que se pode fazer para que as organizações sejam ainda mais ativas na inovação e eficiência, com lógica integrada da accountability ao processo de gestão.

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