A USP é elitista?

Por Ester Gammardella Rizzi, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 02/06/2023 - Publicado há 11 meses

No dia 26 de abril de 2023, foi inaugurada a Exposição Inclusão e Pertencimento no Salão Caramelo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. A exposição é resultado de um questionário que convidou toda a comunidade uspiana a responder algumas questões.

Entre as perguntas formuladas, havia duas assim: “Na sua opinião, quais as três palavras que descrevem as melhores características da USP?” e “Na sua opinião, quais as três palavras que descrevem as piores características da USP?”. A partir das respostas coletadas foi feita uma grande nuvem de palavras que estava na exposição. As palavras verdes indicavam as melhores características mencionadas e as vermelhas, as piores características.

Na fotografia é possível ver esse trecho da exposição:

Foto: Marcos Santos / USP Imagens

As palavras que aparecem em maior destaque são “excelência”, em verde, e “elitista”, em vermelho. Isso significa que uma grande parcela da comunidade uspiana que respondeu ao questionário considera que a USP é elitista e que isso é uma de suas piores características.

Mesmo sem o questionário, essa é uma expressão que aparece reiteradamente nos discursos políticos críticos à USP. Eu mesma já participei desse coro, é bom dizer. Neste 2023, fiquei provocada a pensar nas mudanças recentes por que tem passado a Universidade e em que medida o tal do elitismo pode continuar a ser apontado em tom crítico. Acho que são três os elementos que merecem ser analisados:

(i) busca de diversidade no ingresso de novos estudantes de graduação (mas também de pós);
(ii) Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (Papfe) e
(iii) recém-aprovada ação afirmativa para concursos de servidores e docentes.

Vou analisá-las separadamente para ao final tentar uma síntese (sempre provisória, em uma história que está em movimento, como é a história da Universidade).

Busca de diversidade no ingresso de novos estudantes

Desde 2006, a USP adota uma política de estímulo à matrícula de estudantes que fizeram todo o ensino médio em escolas públicas. O Programa de Inclusão Social da USP, que ficou conhecido como Inclusp, apresentou razoáveis resultados em seus 10 primeiros anos: em 2006, havia 24% de matriculados que haviam feito escolas públicas; em 2015, 34%. Mas ainda parecia algo insuficiente.

Em 2017, o que era bônus nas notas do vestibular para estudantes de escolas públicas transformou-se em reserva de vagas. No vestibular 2017/2018, 37% das vagas para ingressantes da Universidade foram destinadas a estudantes de escolas públicas. Em 2020/2021, atingiu-se a porcentagem prevista como meta desde 2017: 50% das vagas de ingresso no vestibular reservadas a estudantes que fizeram todo o ensino médio em escolas públicas.

No mesmo 2017, paralelamente à reserva de vagas para escolas públicas, foram aprovadas vagas para pretos, pardos e indígenas. A porcentagem dos chamados PPI é aplicada sobre as vagas reservadas para estudantes de escolas públicas, na proporção da sociedade paulista (37%).

No vestibular de 2022/2023, uma nova mudança importante: até 2021/2022, os estudantes de escola pública e a ampla concorrência se inscreviam no que funcionava como dois vestibulares separados: 50% de vagas para cada lado. Os estudantes inscritos em um dos lados só concorriam com quem estava do mesmo lado. Em alguns cursos, o “lado” dos estudantes de escolas públicas tinha uma nota de corte mais alta do que o “lado” da ampla concorrência/escolas privadas.

Como o objetivo é ampliar a participação de estudantes de escolas públicas (e pretos, pardos e indígenas, já que a reserva de vagas para PPI se dá a partir das vagas destinadas a escolas públicas), em 2023 a dinâmica do vestibular foi modificada. Todos concorrem nas vagas destinadas à ampla concorrência. Quando são completadas as vagas com os aprovados nos 50% da ampla concorrência, aí sim começam a ser identificados apenas aqueles estudantes que são de escolas públicas e PPI.

Além disso, foi também no ingresso de 2023 em que pela primeira vez os estudantes autodeclarados pretos e pardos no vestibular passaram por uma comissão de heteroidentificação antes de realizarem suas matrículas, reivindicação antiga do movimento negro universitário.

No dia 15 de maio de 2023, foi publicado um balanço sobre os resultados desta nova mudança recente: “Das 10.662 vagas preenchidas, 5.714 são de alunos que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas (EP), ou seja, 54,1%, sendo que 2.020 estudantes são também do grupo Pretos, Pardos e Indígenas (PPI).” Aqui uma imagem que ilustra a mudança ao longo do tempo, mudança que é resultado das políticas adotadas:

Eu ingressei como estudante de graduação na USP em 2002, e me formei em 2007. Como já mencionado, os dados de 2006 indicam que havia apenas 24% de estudantes de escolas públicas entre os graduandos. É razoável supor que esses 24% estavam distribuídos desigualmente entre os cursos da Universidade. Na Faculdade de Direito em que estudei, esse porcentual era muito menor.

A USP em que fiz minha graduação no início do século 21 e a USP de 2023 são muito diferentes. Felizmente diferentes. A USP mudou muito sua composição de entrada e para melhor. Excelência em pesquisa se alcança por meio da diversidade de pesquisadores. 54,1% de estudantes de escola pública, 27,2% de pretos, pardos e indígenas na graduação. Isso para não mencionar os diversos programas de pós-graduação que começam a adotar ações afirmativas em seus processos seletivos. Volto à pergunta do título: com essa mudança importante no perfil de ingressantes, será que podemos chamar a USP de elitista? Ao menos quanto à composição dos discentes, somos mais diversos do que jamais fomos.

Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (Papfe)

O PAPFE foi criado em 2006, juntamente com o Inclusp.

Até 2006, havia o Crusp (e outras moradias estudantis da universidade), havia a Casa dos Estudantes (gerida pelo CA XI de Agosto), havia os bandejões com alimentação subsidiada, havia gratuidade nos bandejões para alguns estudantes. Nenhum dinheiro era entregue diretamente aos alunos para garantir sua permanência na Universidade (bolsas de pesquisa e iniciação científica, sim). Isso começou a ser feito em 2006, e o processo detalhado de constituição de cada um dos auxílios é uma história ainda a ser contada.

Interessante notar que mudanças importantes no Programa de Permanência foram concomitantes com as mencionadas mudanças na forma de ingresso do vestibular: 2006, criação do Papfe e início do Inclusp; 2017, reserva de vagas para escola pública e para pretos, pardos e indígenas e ampliação do Papfe; 2022, mudança no vestibular, reorganização e ampliação do Papfe. Maior diversidade no ingresso de estudantes, maior necessidade de apoio para permanência, faz sentido. Entre 2017 e 2022, o cenário era mais ou menos o descrito nesta reportagem do Jornal da USP.

Tomemos como exemplo um estudante da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), unidade em que sou docente. Esse estudante hipotético poderia receber:

a) auxílio moradia;
b) auxílio livro;
c) alimentação gratuita no restaurante;
d) transporte;
e) um apoio manutenção específico para a EACH.

Para obter todos esses benefícios, porém, ele teria que solicitar separadamente cada um deles, em prazos e períodos diferentes. O auxílio transporte e o auxílio livro só eram pagos nos meses letivos. Se um estudante tivesse acesso a todos os auxílios ao mesmo tempo e considerando um mês letivo, ele poderia receber no máximo R$ 850,00. Estudantes de outros campi poderiam receber, no máximo, R$ 650,00.

Vejamos agora a situação atual, O auxílio unificado para todos os beneficiários do Papfe e durante todos os meses do ano que o Conselho de Inclusão e Pertencimento aprovou em dezembro de 2022, chamado “Novo-Papfe”, é de R$ 800,00 (a esse valor se acresce a refeição gratuita no bandejão; apenas no caso dos moradores de moradia estudantil, o valor é diminuído para R$ 300,00). A opção política foi a unificação e a padronização de toda a política de permanência na Universidade, apesar das diferenças – que sabemos que existem – entre morar na capital e em uma cidade do interior, por exemplo. Essa unificação veio com um aumento significativo no valor que cada um dos estudantes recebe.

Sobre o panorama da permanência na USP em 2023, há dados importantes que precisam ser considerados:

Em 2022, foram destinados 60 milhões de reais pela Universidade.
Em 2023, são 128 milhões de reais.
Em 2022, quem tinha vaga na moradia não recebia nenhum real a mais para permanência.
Em 2023, quem tem vaga na moradia recebe 300 reais mensais.
Em 2022, nenhum pós-graduando recebia o Papfe.
Em 2023, cerca de 1.000 pós-graduandos passarão a receber.

O “Novo-Papfe” trouxe também uma mudança grande nas etapas e critérios para a concessão de auxílios. Acho inegável que neste 2023 a política de permanência na Universidade de São Paulo se fortaleceu e se ampliou, processo concomitante – e liderado – pela recém-criada Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento, na qual estou atuando como assessora. O próximo passo, além de avaliar os resultados das mudanças implementadas, é criar um programa de acompanhamento acadêmico dos beneficiários dos auxílios, saber mais sobre as trajetórias educacionais e o impacto que esses auxílios têm nesse percurso, a exemplo de pesquisa que a profa. Marta Arretche já fez com um grupo de cerca de 60 estudantes recentemente. Enfim, há todo um caminho a ser trilhado no aperfeiçoamento da permanência universitária. Mas passos importantes já foram e estão sendo dados.

Ações afirmativas no concurso de ingresso para servidores e docentes

No último dia 22 de maio de 2023, o Conselho Universitário da USP aprovou uma resolução que prevê adoção e parâmetros para a efetivação de política afirmativa para pretos, pardos e indígenas em concursos públicos para provimento de cargos de docentes e admissão de servidores técnicos e administrativos na Universidade de São Paulo.

Segundo notícia deste Jornal da USP publicada no mesmo dia:

“O tipo de ação afirmativa aplicável a cada concurso público ou processo seletivo será definido a partir do número de vagas em disputa. Para os concursos ou processos seletivos em que o número de vagas oferecidas seja igual ou superior a três, serão reservadas 20% das vagas existentes ao público PPI.

Para aqueles cujo número de vagas oferecidas seja de uma ou duas, os candidatos PPI receberão pontuação diferenciada, de acordo com o estabelecido no Decreto Estadual nº 63.979, de 19 de dezembro de 2018. Esse cálculo leva em conta a pontuação média da concorrência entre todos os candidatos e a pontuação média da concorrência PPI.”

Embora a aprovação de reserva de vagas nos concursos públicos de servidores técnico-administrativos tenha sido um importante avanço, comemorado na Universidade, o caminho adotado para ampliação do número de docentes negros na Universidade foi considerado insuficiente. Nota publicada pelo Coletivo de Docentes Negras e Negros da USP afirma “tratar-se de medida ineficiente e mesmo inócua, pois a opção pela bonificação nos concursos docentes não será capaz de, em tempo razoável, garantir o ingresso de número significativo de PPI”.

Se a diversidade já está estabelecida e estabilizada no ingresso de estudantes de graduação, o mesmo não se pode dizer a respeito dos programas de pós (que estão em diferentes estágios) e a respeito do ingresso de docentes na USP. A proposta aprovada no Conselho Universitário terá um impacto tímido na composição do corpo docente, que atualmente conta com apenas 2% de professores negros.

De qualquer forma, a discussão e apresentação das resoluções aprovadas colocam um tema novo na agenda da Universidade. Quando lembrada a história das políticas de ações afirmativas para ingresso no vestibular, pode ser um passo que será aprofundado no futuro.

Síntese provisória

A Universidade de São Paulo é uma universidade pública. Como tal, estudantes cursam suas graduações e pós-graduações sem nenhum custo universitário. A gratuidade é a primeira característica que, em um país desigual como é o Brasil, estimula a diversidade social no âmbito da universidade. Analisar contextos distintos, outros países, em que mesmo o sistema público de ensino superior é financiado com tuition ou tuition fees (mensalidades), dá a dimensão de quanto essa característica brasileira amplia a possibilidade de acesso ao ensino superior público brasileiro.

Desde 2006, com ampliações significativas em 2017 e 2022, a USP promove políticas para ampliar a diversidade de seu corpo discente, seja favorecendo estudantes de escolas públicas, seja reservando vagas para esses e para estudantes pretos, pardos e indígenas.

Somando-se à gratuidade e às políticas de ações afirmativas, a Universidade de São Paulo ainda conta com um programa de distribuição de auxílios que deverá atingir mais de 13.300 estudantes de graduação. O Escritório de Gestão de Indicadores de Desempenho Acadêmico (Egida) informa que “temos atualmente 60 mil estudantes de graduação matriculados”. Os mais de 13 mil estudantes que estão recebendo auxílio, em um total de 60 mil estudantes, representam 21,8% do nosso corpo discente de graduação. Vale frisar: mais de 21% de alunos que recebem apoio financeiro e gratuidade nas refeições para permanecer e estudar na Universidade.

Considerando todas as características (universidade gratuita + concessão de auxílio em dinheiro, nessa proporção e valor + gratuidade nos restaurantes universitários), trata-se do maior programa de permanência estudantil de que tenho notícias.

A decisão da última segunda-feira do Conselho Universitário, que resiste a outras propostas já adotadas por universidades federais para reserva de vagas em concursos docentes, mostra que o conjunto dos professores ainda é bastante homogêneo – e algo resistente a caminhos que possam ampliar sua diversidade. Os avanços relacionados ao corpo discente, porém, são inegáveis.

Otto Kirchheimer, autor alemão que escreve o texto Mudança de significado do parlamentarismo, na Alemanha de 1928, descreve a profunda mudança ocorrida no Legislativo quando o voto deixou de ser censitário e passou a ser universal, quando a composição do Legislativo deixou de ser homogênea e passou a ser socialmente plural. Uma mudança de significado institucional na dinâmica política do país. Transformações na composição das instituições costumam significar mudanças profundas na forma como essas instituições atuam. A USP deu passos largos nesse sentido, me parece. E essa diversidade trazida para dentro repercute em novas dinâmicas, novas demandas, novos temas de pesquisa, novas prioridades, novas relações. Diversidade no corpo discente é só um primeiro e fundamental passo.

Há ainda, é claro, muito a avançar. Mas me parece igualmente claro que a USP de 2023 já é muito menos elitista do que a USP que eu conheci em 2002. E caminha a passos largos para ser cada vez mais plural e diversa, em todos os níveis. É uma questão de tempo. Desejo que não seja muito longo, mas, seja como for, creio que devemos nos orgulhar ao perceber a parte do caminho que já foi percorrida.

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