O sistema de cotas étnico-raciais adotado pela USP

Ricardo Alexino Ferreira é Prof. Associado (livre docente) da Escola de Comunicação e Artes e membro da Comissão de Direitos Humanos da USP

 05/01/2018 - Publicado há 6 anos
Ricardo Alexino Ferreira – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

Após resistir por décadas em adoção do sistema de cotas raciais, a USP finalmente cedeu, no ano passado, através das congregações das unidades e do Conselho Universitário, e introduziu políticas afirmativas na Fuvest 2018 e Sisu. Provavelmente, a composição étnica da USP nos seus diferentes campi tenderá a ser mais diversificada, a partir deste ano.

Relembrando, a votação no Conselho Universitário em julho do ano passado foi histórica, em que 75 membros do Conselho Universitário da USP disseram sim ao sistema de cotas; oito disseram não e nove se abstiveram. Totalizando 92 votos.

Assim, 37 por cento das vagas do vestibular da Fuvest 2018 foram destinadas aos alunos de escolas públicas. A cada ano a reserva de cotas irá subir, até atingir a meta, em 2021, de 50 por cento das vagas destinadas ao sistema de cotas.

As vagas reservadas para Pretos, Pardos e Indígenas (PPIs), termos que são designações do IBGE, serão proporcionais à presença desses segmentos no Estado de São Paulo. Assim, dos 37%, 13,7% serão reservados para Pretos, Pardos e Indígenas.

É a primeira vez que a USP adotou um sistema de cotas sociais e raciais. Como diz o ditado popular, “antes tarde do que nunca”.

Mas, ao adotar o sistema de cotas raciais, a USP sinaliza que está, de certa forma e em seu ritmo, em transformação. Se por um lado, reconhece que não é mais possível se fechar na ideologia da meritocracia, ainda precisa mudar os seus diferentes paradigmas.

Um deles, que ainda é um desafio para a USP, é aproximar Extensão Universitária do Ensino e da Pesquisa. Muitas vezes, as pesquisas desenvolvidas na USP ainda estão longe das questões sociais. Não me refiro somente ao debate sobre pesquisa básica ou aplicada. A questão é mais profunda.

Após resistir por décadas em adoção do sistema de cotas raciais, a USP finalmente cedeu, no ano passado, através das congregações das unidades e do Conselho Universitário, e introduziu políticas afirmativas na Fuvest 2018 e Sisu

Por exemplo, não raro, em fortes chuvas que assolam São Paulo, o campus Butantã da USP costuma ficar alagado, impossibilitando a saída dos carros em todas as suas portarias. Atualmente, a acessibilidade e mobilidade no campus são muito precárias. Um cadeirante, por exemplo, não consegue com facilidade e autonomia passar de um prédio para outro.

Ou seja, a maior universidade pública da América Latina produz ciência de ponta, mas ruas e áreas não contemplam projetos urbanísticos; seus prédios não têm conforto ambiental ou acústico e há pouquíssima preocupação com acessibilidade, dentro e fora dos prédios. Assim, há produção de ciência de ponta, que não transforma de fato os diferentes cenários do seu próprio campus.

O ensino de graduação ainda utiliza os mesmos paradigmas de quando a USP foi fundada. As disciplinas ainda são demarcadas por áreas de Humanas, Biológicas e Exatas, contempladas pelo Positivismo comtiano.

O ideal de interdisciplinaridade (ou transdisciplinaridade, para os mais ousados) fica somente no inalcançável. Na maior parte das vezes, em um mesmo departamento, um professor não sabe o conteúdo que o seu colega está ministrando.

Disciplinas semestrais que tomam todo um período de longas aulas de quatro horas ainda estão presentes em grades curriculares pouco flexíveis. Alunos passam mais tempo em salas de aula do que em bibliotecas.

A apatia sócio-político-cultural é outro aspecto da USP. Os seus grupos representativos (Adusp, Sintusp e movimentos estudantis) pouco têm mobilizado politicamente a USP. As questões políticas do país têm passado ao largo da universidade e das suas salas de aula. Nunca, em toda a história da universidade, se viu estudantes, professores e servidores técnicos e administrativos tão desinteressados e desinformados sobre o que está acontecendo no país.

Há produção de ciência de ponta (na USP), que não transforma de fato os diferentes cenários do seu próprio campus.

É essa a USP que os primeiros cotistas, que estão entrando pelo sistema de cotas raciais, irão encontrar. Uma USP que ainda estuda muito pouco diversidades étnico-sociais e raciais, temáticas geralmente ofertadas em poucas disciplinas, que a despeito de não trazerem em seus conteúdos questões como direitos humanos e cidadania, ainda estão mais envoltas em atender as necessidades de mercado.

Assim, os alunos cotistas encontrarão uma USP ainda pouco preparada para recebê-los e ainda com a ideologia da meritocracia e de pensamento elitista.

Outro fator urgente é a preparação da Polícia Militar, que está dentro do campus, no trato com as pessoas negras, que irão compor com mais constância o cenário da USP. São muitos os relatos dos poucos estudantes negros e intercambistas africanos sobre constantes abordagens policiais motivadas por questões étnicas. Esses estudantes relatam que policiais, muitas vezes, os abordam quando estão passando de um prédio para outro para revistas vexatórias.

Outro dado relevante é a composição étnica do corpo docente da universidade. Conforme dados do Departamento de Recursos Humanos da USP, coletados por Viviane Angélica Silva, doutora em Educação, em sua pesquisa sobre teorias de relações raciais no Brasil, dos seis mil professores na USP, apenas 120 são professores negros.

Ao analisar a maioria dos planos de ensino das disciplinas ofertadas pela USP tenho observado em dados preliminares, em pesquisa que estou realizando sobre planos de ensino, que indicam que a USP é por demais eurocêntrica.

Os planos de ensino nas áreas das Humanidades; Ciências Sociais Aplicadas; Educação e outras disciplinas similares ainda têm como base, em sua maioria, autores europeus e norte-americanos; poucos latinoamericanos e pouquíssimos africanos. Só para se ter uma ideia, a obra “Mayombe”, do escritor angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos (Pepetela), foi a primeira (e ainda única) literatura africana a compor obra obrigatória da Fuvest de 2017.

Assim, a implantação do sistema de cotas raciais na USP foi um grande avanço, mas precisa vir com várias outras medidas e mudanças de paradigmas. De nada será efetivo não trazer a temática das diversidades para dentro dos conteúdos e pesquisas desenvolvidas na universidade. É preciso que temáticas étnico-sociais e raciais; direitos humanos e cidadania sejam transversais na estrutura universitária, envolvendo ensino, pesquisa, extensão e gestão. O grande desafio não é mais uma USP moderna, mas uma USP contemporânea.

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