Modernismos 1922-2022: leitura de soslaio e anotações de “cabotagem”

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

 28/08/2023 - Publicado há 8 meses

“Não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição”
(Mário de Andrade)

O ano de 2022 foi repleto de exposições, eventos e projetos que abordaram e revisaram, de modo crítico, o centenário da Semana de Arte Moderna. Não faltaram pesquisas, publicações, novas teses e ideias sobre as manifestações que ocorreram no Teatro Municipal, em São Paulo, durante aqueles três dias de fevereiro de 1922 – um acontecimento que se tornou, praticamente, um mito vasculhado por diversas investigações. E a cada efeméride … 10, 20, 50 e 100 anos, surgem novas interpretações e são levantados questionamentos, tais como: foi um evento com “tom festivo” (nada sério)? Foi, realmente, um “divisor de águas” na história da arte brasileira?  De fato, construiu nova estética para o país? Quais memórias venceram e quais foram negligenciadas? Quem são os “esquecidos” da Semana?

Os debates persistiram no biênio 2021/2022 e ainda ecoam entre nós em 2023. Entre as discussões, evidencia-se o ciclo de palestras 1922: modernismos em debate, realizado no decorrer de 2021, organizado pelo Instituto Moreira Salles, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo e Pinacoteca do Estado de São Paulo. Foram cerca de 50 convidados entre palestrantes e mediadores que discutiram o histórico do evento, seu reexame e manifestações similares em outras regiões do país. Para os que perderam as discussões, fica a dica: tudo está no seguinte link https://ims.com.br/eventos/1922-modernismos-em-debate/.

Fonte de pesquisa, igualmente, importante são as sucessivas exposições que foram motivadas por temáticas ligadas ao Modernismo brasileiro. A mostra Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil, com curadoria de Aldrin Figueiredo, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos, Paula Ramos e Raphael Fonseca, realizada no Sesc 24 de maio, entre fevereiro e agosto de 2022, por exemplo, foi considerada pela Associação Brasileira dos Críticos de Arte (ABCA), a melhor exposição do ano. Notadamente, dentro da vertente de estudos que se dedicam às narrativas trazidas por exposições, Raio-que-o-parta jogou luzes para além dos anos de 1920 e da centralidade atribuída à São Paulo. A reunião das obras nos conta uma nova versão da história da modernidade no território nacional. Vale a pena saber mais sobre essa mostra!

Entre as leituras referenciais sobre o tema, distingue-se Modernismos 1922-2022, publicação organizada por Gênese de Andrade, lançada pela Companhia das Letras. O livro traz 29 ensaios de autores reconhecidos que discutem os vários campos de investigações abertos pelos acontecimentos da Semana e seus desdobramentos – uma obra literalmente de fôlego (são 824 páginas). E aí, a partir do universo apresentado pelo livro, entendemos o “servir de lição”, apregoado por Mário de Andrade. Alguns dos ensaios são reflexões densas; outras revisitam memórias, e outras ainda, aclaram conceitos e (quase todos) desmistificam ideias sacralizadas por uma historiografia que, agora, é revista.

O tratamento do processo como Modernismos (assim, no plural) – tal como o ciclo de palestras já mencionado – aponta para a ação de “rever a história”, abrindo espaço para correntes e agentes menos conhecidos, senão apagados pelos relatos consagrados; o uso de modernismos nos faz entender que foram diversas as renovações que desbancaram os passadistas (que também eram múltiplos). Em 1992, o historiador Nicolau Sevcenko já nos alertava, em Orfeu extático na metrópole, que os termos “moderno” e “modernidade” ganharam expressividade no século XX, passando a ser o mesmo que “novo”, “novidade”, “avanço” e “progresso”. Ao fim e ao cabo, indicavam o abandono de velhos parâmetros e a entrada em uma nova época marcada pela ciência e tecnologia. Nas artes, o moderno tinha sua máxima consciência simbólica, particularmente na música, nas artes plásticas, na poesia e na literatura.

Em Modernismos 1922-2022, estudos dedicados à história, à arquitetura, à moda, à poesia, à literatura e às artes visuais mostram essa consciência simbólica, a transversalidade entre os temas abordados e, sobretudo, a complexidade da fortuna crítica acumulada por 100 anos. Alguns ensaios que versam sobre literatura e poesia são bastante aprofundados e exigem conhecimentos técnicos mais do que medianos – e isso pode deixar alguns em território não tão confortável.

Confessadamente, minha leitura completa do livro foi de soslaio. Tenho certeza de que o regresso à leitura será necessário cada vez que novas questões surgirem sobre temas adjacentes. Com efeito, é um livro de consulta – daqueles que se lê com novos objetivos de tempos em tempos. Já o interesse pelas artes visuais despertou as anotações, que me atrevo a chamar de “cabotagem”, isto porque circundo (sem a pretensão de esgotar o assunto), principalmente o debate que envolve autorias e representações, ou seja, interessa-me aqui apontar alguns artigos que contribuem para pensar gênero, raça e os marginais de uma escrita da história que elegeu a Semana de Arte Moderna de 1922 como paradigma da arte brasileira.

Porém, antes de destacar os textos que tratam sobre o legado feminino, afrodescendente, indígena e seus ecos (ou o mais comum, os silenciamentos) nos eventos da Semana de Arte, merece destaque o ensaio “A galeria brasileira de 1889 como origem das artes visuais na Semana de Arte Moderna”, de Felipe Chaimovich. Nesse texto, a participação da família Prado na organização da Semana e os acontecimentos ligados à virada da República e à imigração dão a dimensão político-econômica, mas, acima de tudo, elucida o questionamento do ensino acadêmico, ou seja, aquela máxima que dizia que os modernistas eram contra o academicismo ganha coerência histórica.

Outro ensaio imperdível é “1922: o evento-vesúvio e os tempos renegados”, de Elias Thomé Saliba. Nesse texto, revelam-se bastidores que envolvem políticos, intelectuais e a elite cafeeira paulistana – são relações que não se atêm a 1922. Pelo contrário, Saliba resgata eventos de 1911 (o temor por uma intervenção militar em São Paulo) e 1924 (a invasão dos tenentes rebeldes) – histórias obliteradas pela intelectualidade, como ele coloca: “1922, portanto, se transmutou num autêntico vesúvio cultural, cuja erupção espargiu cinzas sobre a memória coletiva, obnubilando corações e mentes”.

Partindo para os textos que discutem temas e perspectivas, até então, escanteados pela historiografia hegemônica, destaca-se o ensaio “As mulheres na Semana de 22 e depois”, de Regina Teixeira de Barros. Nele, o protagonismo de Anita Malfatti é descrito, mas o enfoque recai sobre as produções de duas outras mulheres que estavam na exposição de artes plásticas ocorrida no Teatro Municipal: Zina Aita e Regina Gomide Graz. Acrescente-se às artistas, a contribuição “silenciosa” de Mina Klabin Warchavchik para a exposição da Casa Modernista. Mina cuidou da jardinagem e da decoração da casa. Teixeira Barros nos revela a atuação das mulheres na construção da modernidade brasileira.

Outro texto integrado à nossa seleção é “O negrismo e as vanguardas nos modernismos brasileiros: presença e ausência”, de Lilia Moritz Schwarcz. O texto toca na questão do negrismo, ou seja, a onda de “amor ao negro” presente em Paris nos anos de 1920 – já pontuado aqui no Jornal da USP, no artigo “A modernidade e o ‘amor ao negro’”. Porém, a discussão mais reveladora, na minha opinião, trata da celeuma entre Lima Barreto e os jovens escritores modernistas. Ao final, a autora nos revela: “minha hipótese é que a escravidão ainda significava um limite forte para a linguagem modernista paulistana”.

Já o texto “A sexualidade de Mário de Andrade: a prova dos nove”, de César Braga-Pinto, é de leitura surpreendente. Aqui, exerço uma exceção: não é um ensaio sobre artes visuais. À primeira vista, tem-se a ideia de que Braga-Pinto teria a intenção de “retirar Mário de Andrade do armário”. Mas, logo o autor nos dissuade: ele discute as abordagens racistas e homofóbicas. E, mesmo aquelas “discretas”, que evitam tratar a questão na poesia de Mário de Andrade, esboçam a homofobia. Na sequência, o autor introduz observações sobre o “eu lírico” do poeta. Como conclusão, o autor mostra que Mário de Andrade propõe um arquivo anti-homofóbico associado ao discurso biográfico, mas que, simultaneamente, está liberto de sua pessoa.

O ensaio “Representação, representatividade e necropolítica nas artes visuais”, de Renata Aparecida Felinto dos Santos, causa forte impacto porque coloca o embate entre representatividade e representação. Um dos exemplos discutido pela autora, é o da representação da tela A negra, de Tarsila do Amaral. O problema da representação na arte moderna nacional é exposto sem rodeios – algo explícito na frase: “o modernismo deleita-se na fonte das culturas ditas autóctones, populares, africanas, contudo, se remexe nas cadeiras quando nos sentamos à mesa e pedimos nosso copo de gozo”.

Nessa pequena seleção, ainda temos o ensaio “Jaider Esbell Makunaimâ manifesto e a cosmopolítica da arte indígena contemporânea”, de Marília Librandi. No fundo, um testemunho afetivo da autora que expõe a trajetória, as ideias e as preocupações de Jaider Esbell (1979-2021), artista e escritor macuxi que desde 2013, quando organizou o I Encontro de Todos os Povos, assumiu um papel fulcral no movimento de consolidação da arte indígena contemporânea no contexto brasileiro, atuando de forma múltipla e interdisciplinar. Esbell combinou as funções de artista, curador, escritor e educador. O ensaio foi concebido sob a comoção de sua morte e revela, sobretudo, a força da arte indígena contemporânea.

Por fim, minha leitura dirigida aos ensaios que tratam sobre o debate entre representação versus autoria, sobre as pautas femininas, feministas, negras, indígenas e de diversidade de gênero e sexual assinala as revisões sobre a Semana de Arte Moderna de 1922 e como esse evento-mito, a cada nova mirada, traz novas “anotações de cabotagem” – construindo e reconstruindo a escrita sobre a história da arte brasileira.

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