120 anos de Portinari, “retratista de negros e mulatos”

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

 23/10/2023 - Publicado há 7 meses

Combatido por alguns e admirado por tantos outros, Candido Portinari (1903-1962) tem vida e obra relacionadas ao processo de assimilação da arte moderna às instâncias do poder institucionalizado, ou ainda, assinala um período de adesão do Modernismo ao discurso oficial do Estado – transcurso que, mais tarde, é consolidado pela criação de museus, tais como o Masp, os museus de arte moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro, nos fins dos anos de 1940 e, posteriormente, a Bienal, no início dos anos de 1950.

Agraciado pela “política da boa vizinhança”, estipulada por Franklin Roosevelt, e pelas ações ministeriais de Gustavo Capanema, o pintor torna-se o nome mais conhecido da arte brasileira no cenário internacional, entre os anos de 1930 e 1950, tendo trabalhos em museus, como o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), e edifícios públicos no exterior, como a Biblioteca do Congresso em Washington e a sede da Organização das Nações Unidas (ONU).

Esse “caráter oficial” da produção de Portinari, vista como exemplo de arte brasileira, está ligado às preocupações de artistas e intelectuais, nos anos de 1930, em moldar a “arte nacional” a partir do meio social, assim como forjar uma nação unificada. Sendo assim, revisitar as bases deste projeto por meio das obras de Portinari é, também, fomentar o debate que gira em torno da representação e da ideia de identidade nacional. O repertório deste “retratista de negros e mulatos” atrelado ao discurso do Estado e à ideia de brasilidade parece, à primeira vista, trazer algumas contradições.

Nas Exposições Universais, em particular nas primeiras edições (Londres, 1862; Paris, 1867; Viena, 1873 e Filadélfia, 1876), a imagem do Brasil é vendida como um país branco e europeizado. No início do século 20, a situação não se altera, mas recebe suas primeiras contestações. Um dos principais embates entre os organizadores das comemorações dos 100 anos da Independência do País e os da Semana de Arte Moderna de 1922 está, justamente, na existência de dois projetos de “Brasil moderno”. Para os primeiros, o brasileiro tornou-se “raça melhorada” pelas políticas de imigração e de embranquecimento – um conceito de higienização étnica. Para os modernistas da fase heroica, a “brasilidade” está na representação de índios, negros e mestiços – colocados como “os da terra”.

Então, em 1939, Portinari leva ao Pavilhão do Brasil, na Feira Mundial de Nova York, três grandes painéis com negros e mestiços, sendo essa a imagem oficial da identidade brasileira. Quais são as circunstâncias históricas que assinalam essa mudança no discurso do Estado? E, mais ainda, por que Portinari é o eleito para mostrar esse “novo Brasil”? Na busca de possíveis respostas, resgatamos o início da jornada internacional do pintor e seu alinhamento com o Estado Novo, nos anos de 1930 e 1940 – um período de mudança estética e cultural no País.

Em março de 1935, Portinari tem a notícia de que participaria da International Exhibition of Paintings do Carnegie Institute – naquele tempo, a mostra é vista como uma grande vitrine destinada às produções mais recentes – nosso pintor em trecho de carta, datada em 10 de abril de 1935, a Mário de Andrade, entende a oportunidade de se destacar nesta exposição: “Fiquei todo esse tempo sem escrever porque comecei uma colheita de café com cinquenta figuras – dois metros e tal. Em tamanho é o maior que já fiz (…) A colheita tá me dando um trabalho danado. Vou ser convidado para expor em uma exposição nos Estados Unidos – Carnegie Institute”.

Essa “colheita de café” é a tela Café (1935), que hoje integra o acervo do Museu de Belas-Artes (Rio de Janeiro). Neste trabalho, o pintor busca suas lembranças no meio agrícola, no convívio com trabalhadores rurais e no cotidiano das fazendas cafeicultoras (onde nasceu). O tema da tela é a colheita do café (o produto-exportação da economia nacional, naquela ocasião). Seus elementos centrais são os trabalhadores (negros e mulatos). Ao observar a tela, não há como não referenciar o passado escravista e a realidade campesina, ainda existente em muitas fazendas do interior do País. Um dos aspectos estéticos mais discutidos nas obras do pintor e presente nesta tela é a deformidade dos pés e mãos desses trabalhadores. Ele mesmo nos conta sobre isso:

“Impressionava-me os pés dos trabalhadores das fazendas de café. Pés disformes. Pés que podem contar uma história. Confundiam-se com as pedras e espinhos.”

Os pés descalços e sofridos dos trabalhadores rurais – dignos da empatia do artista – evocam a pesquisa sobre a estatuária africana motivada pelas vanguardas históricas, em especial, o cubismo. Possivelmente, um processo investigativo ocorrido durante sua estadia, em 1928, na Europa. Mas, também, o gigantismo de pés e mãos converte-se em metáfora do trabalho diário, sendo, simultaneamente, a marca daqueles ligados à natureza.

No contexto internacional, Café ganha destaque: a tela é premiada (segunda menção honrosa) e recebe comentários relevantes da crítica norte-americana, particularmente por seu caráter muralista e por não ser tão colada às experiências vanguardistas europeias. A boa recepção da crítica relaciona-se às experiências do público daquele país com as obras de Diego Rivera – que em anos anteriores realiza diversos murais nos EUA com o incentivo de Nelson Rockefeller. Na verdade, as repercussões de Café são o primeiro reconhecimento no exterior de Portinari.

Quando o artista executa os três painéis, no Pavilhão do Brasil, na Feira Mundial de Nova York, elaborado por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, por encomenda do governo brasileiro, em 1939, Portinari já tem essa projeção internacional. Seguindo a tradição das Exposições Universais, o governo brasileiro usa o evento para convencer as indústrias estadunidenses (públicas e privadas) a investirem no País. A feira é a ocasião para exibir o desenvolvimento tecnológico, o progresso e a abundância da terra brasileira. Por essa razão, as apostas são na distinção no projeto arquitetônico do espaço do pavilhão e na escolha do léxico visual moderno de Portinari.

Feitos em têmpera sobre chassi, os painéis registram os tipos humanos, as festas, as tradições culturais, buscando a diversidade regional, mas, sobretudo, exaltam a figura do “trabalhador heroico”. Noite de São João, por exemplo, mostra um agrupamento de pessoas em atividades diversas, relacionadas à celebração do santo. Essa obra foi destruída no incêndio que consumiu o MoMA em 1958. Em Jangadas do Nordeste, mulheres e homens negros sãos registrados no momento da pesca. No terceiro painel, Cena Gaúcha, Portinari coloca outra vez os personagens em torno do cotidiano do trabalho. Esses dois últimos painéis mostram ainda as diferenças geográficas do País – atualmente, integram o acervo do Ministério das Relações Exteriores.

Durante a exibição na Feira, o trabalho de Portinari chama a atenção do curador Alfred H. Barr e por seu intermédio o MoMa adquire a tela O Morro (1933), à época, a única tela de um artista sul-americano a integrar grandes exposições deste museu. O tema da obra alude à geografia e aos tipos humanos, a partir de cores fortes – aspecto que diferencia a “arte brasileira” no exterior. A biografia do artista mostra que o ano de 1940 é intenso. Portinari participa de uma mostra de arte latino-americana no Riverside Museum (Nova York) e expõe individualmente no Instituto de Artes de Detroit e no MoMA (Portinari of Brazil). Em dezembro, a Universidade de Chicago publica o primeiro livro sobre o pintor, Portinari, His Life and Art, com introdução do artista Rockwell Kent e inúmeras reproduções de suas obras. A ressonância do trabalho em terras norte-americanas acontece até os anos de 1950, com os murais da Biblioteca do Congresso de Washington (1942) e a inauguração dos painéis Guerra e Paz (1956), na sede da ONU.

Agora que vimos a recepção dos trabalhos de Portinari no exterior e como passam a ser sinônimos de “arte brasileira”, cabe-nos contextualizar o incentivo do Estado nacional a este “retratista de negros e mulatos”. O viés se dá pela propaganda getulista, que vê o trabalho como algo “honroso” e “redentor”. A vadiagem é combatida ferozmente. O campo passa a ser colocado como o lugar do trabalho, onde as riquezas do Brasil são produzidas, enquanto as cidades, na ideologia dominante, são ocupadas pela ociosidade. Desse modo, a imagem de negros e mestiços atrela-se ao trabalho como mais uma riqueza do país agroexportador.

Outro dado relevante está nas teorias sociais e antropológicas que ganham força nos anos de 1930. À mestiçagem é atribuído valor no processo de construção da nação brasileira, especialmente a partir de Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, 1931, que refuta a ideia de que no País a miscigenação entre brancos, negros e indígenas origina uma raça inferior. O autor discute o conceito de “democracia social”. Já Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, 1936, descreve o brasileiro como um “homem cordial” – aquele que age pelo sentimento, preferindo as relações interpessoais ao cumprimento de leis objetivas e imparciais.

Essas ideias distorcidas por outros autores e interpretações diversas dão suporte ao pressuposto que o País conseguiu alcançar uma convivência harmoniosa – fator que contribui para a criação do chamado “mito da democracia racial”, incidindo na negação dos conflitos étnico-raciais no Brasil, surgindo, então, a visão de um local “paradisíaco”, onde negros e brancos “convivem harmoniosamente”. Ao passo que, nos EUA, ainda existe um sistema legal de segregação racial que perdura até 1960.

Nesse projeto brasileiro de “paraíso das raças”, não por coincidência, a feijoada, conhecida como “comida de escravos”, se converte em “prato nacional”. Já a capoeira, reprimida pela polícia do final do século 19, é colocada como modalidade esportiva nacional em 1937. O samba, então, abandona a marginalidade, assim como os desfiles de escolas de samba passam a ser oficialmente subvencionados – todas manifestações sob a tutela do Estado. No campo das artes visuais, os modernistas, entre eles Portinari, retratam o “povo brasileiro”. E mais, ainda, imagens do pintor mostram que negros e mulatos estão comprometidos com o trabalho e, por sinal, colocam “o modernismo brasileiro” no circuito internacional.

Como Renata Felinto escreve em artigo de 2016, por ocasião da mostra Portinari Popular, no Masp, “ele colocou negros e mulatos na sala de jantar das elites” e, completamos, ele inseriu a arte nacional no sistema da arte a partir da subvenção do Estado. Porém, sobretudo, contribuiu para o imaginário que vê o Brasil como modelo de sociedade sem conflitos e cercada por equidade racial. Situação que só foi revertida na década de 1990, em âmbito internacional, quando o governo brasileiro, pressionado por movimentos sociais, admite que há preconceito racial no País.

_______________
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.