Arqueólogos reconstituem trajetórias e costumes dos povos Jê no Sul do Brasil

Projeto que tem participação de universidades brasileiras e do exterior pode ser considerado o mais ousado da arqueologia brasileira

 22/08/2016 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 23/04/2018 as 15:11
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Proto JE, Campo Belo - Foto: Divulgação
Vista aérea do Sítio Abreu e Garcia, Campo Belo do Sul (SC), que é uma praça de cerimônias funerárias onde foram encontrados pelo menos 15 sepultamentos secundários cremados, datados do século 15 – Foto: José Iriarte

Um projeto de estudo arqueológico que envolve oito universidades do Brasil e do exterior, capitaneado pela USP e outras duas instituições britânicas, University of Exeter e University of Reading, pode ser considerado como um dos mais dinâmicos e ousados da arqueologia brasileira sobre os povos Jê, que habitaram territórios de Santa Catarina, no Sul do Brasil, nos últimos 2 mil anos. “Certamente o maior da região Centro-Sul do País”, assegura o arqueólogo Rafael Corteletti, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, um dos pesquisadores envolvidos no projeto.

O projeto Paisagens Jê do Sul do Brasil: Ecologia, história e poder numa paisagem transicional no Holoceno Tardio tem como um dos principais objetivos compreender a interação entre os povos Jê e os diferentes ecossistemas em que eles viveram. “Um dos grandes pontos de investigação do nosso projeto é saber o quanto estes povos auxiliaram a expandir a área e a densidade da floresta de araucária por volta de 1.000 anos atrás, construindo uma paisagem que hoje é entendida como natural, mas que pode ser resultado da ação humana”, descreve Corteletti.

Escavação - Foto: Divulgação/Cedida pelo pesquisador
Escavações em curso no montículo central do sítio Abreu e Garcia – Foto: Rafael Corteletti

O projeto deu origem a um artigo veiculado recentemente na revista científica PLoS ONE intitulado Understanding the Chronology and Occupation Dynamics of Oversized Pit Houses in the Southern Brazilian Highlands. Segundo o arqueólogo Jonas Gregorio de Souza, doutorando na University of Exeter e primeiro autor do artigo, uma das constatações do estudo é que esses povos tiveram mais de dois séculos de ocupação contínua na mesma casa. “Isso questiona uma ideia anterior, que aparece em alguns textos clássicos sobre o assunto, que seria a de abandono e reocupações”, ressalta o pesquisador. Ele conta que já havia estudos sobre a ocupação das casas subterrâneas desde a década de 1960.

As escavações e datações vêm sendo realizadas em quatro áreas intensivas de pesquisas em Santa Catarina: na região costeira de Laguna, Jaguaruna; na região da encosta da Mata Atlântica, em Rio Fortuna; e nas regiões de Urubici e Campo Belo do Sul, no planalto das araucárias. O arqueólogo estima que toda a área do projeto seja em torno de 200 quilômetros quadrados (km2). Contrariando as hipóteses de abandono, os cientistas estão conseguindo demonstrar que as habitações eram remodeladas. “Um exemplo disso é que, durante os primeiros anos de ocupação, uma casa foi deliberadamente incendiada por cinco ocasiões sucessivas e novos pisos de argila compactada foram preparados por cima dos vestígios de queima do telhado”, descreve Gregorio. “Ao invés de abandonarem e reocuparem a estrutura, seus habitantes a renovaram periodicamente ao longo de dois séculos, mantendo a ocupação da estrutura por várias gerações.” Casas subterrâneas aparecem em muitas regiões do planalto associadas com a ocupação proto-Jê. A casa em questão, como conta Gregorio de Souza, está localizada no sítio Baggio. “Até o momento, as práticas de renovação desta casa não foram encontradas em outras escavações. Isso pode se dever à falta de mais pesquisas, ou a uma particularidade da região onde estamos trabalhando”, avalia.

Para tais constatações, os arqueólogos têm usado a modelagem Bayesiana. Trata-se de um método estatístico que aumenta a precisão das datas de radiocarbono. “Para isso são necessárias muitas datas em sequência”, explica Souza, ressaltando que esse método é aplicado há algum tempo em outras áreas científicas. “Mas na arqueologia brasileira é a primeira vez.”

Antes dos europeus

Máscara do sítio rupestre do Avencal, Urubici
Máscara do sítio rupestre do Avencal, Urubici – Foto: Divulgação

Os proto-Jê do sul do Brasil são amplamente identificados por uma cultura material compartilhada, conhecida como tradição Taquara-Itararé, englobando cerâmica, pedra lascada e polida, e arte rupestre, e por diferentes tipos de sítios arqueológicos com arquitetura em terra – como as aldeias de casas subterrâneas, os montículos, as plataformas, as praças de cerimônias funerárias (danceiros)  ̶ , além de sítios com manchas de terra preta e grutas com sepultamento. O prefixo proto é utilizado para englobar nessa tradição todos os ancestrais dos atuais grupos Jê do Sul  ̶  os Xokleng e os Kaingang  ̶ , incluindo também os antigos falantes das extintas línguas Jê meridionais, Ingain e Kimdá, que estavam onde hoje é o oeste de Santa Catarina e Misiones (Argentina).

A partir da análise dos resíduos microscópicos de alimento (grãos de amido e fitólitos) incrustrados nas paredes dos potes cerâmicos recolhidos na escavação do Sítio Bonin (Urubici), os arqueólogos já sabem que em torno de 700 anos atrás esses povos cultivavam mandioca, feijão e, possivelmente, cará, além de milho e abóbora. Estes resultados mostram que os proto-Jê do sul do Brasil tiveram uma economia de subsistência baseada em uma ampla gama de alimentos de origem animal e vegetal (por intermédio da caça, pesca e coleta) e produziam alimentos mais de um século antes da conquista europeia.

Os estudos também permitiram constatar que o ambiente preferido por eles é o da Mata de Araucária, pois a maior parte dos sítios arqueológicos dos povos proto-Jê  ̶  desde São Paulo até o Rio Grande do Sul  ̶  aparece intimamente vinculada a esse bioma.

As pesquisas tiveram início em 2014 e têm seu término previsto para 2017. Ao todo, quase 60 pessoas atuam no projeto, entre pesquisadores, estudantes de pós-graduação e cerca de 40 estudantes voluntários que participaram dos sítios-escola. “Alguns deles estão desenvolvendo trabalhos de conclusão de graduação com temas do projeto”, ressalta Cortelleti. Esse foi o primeiro projeto contemplado no convênio entre a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e a Arts & Humanities Research Council (AHRC), do Reino Unido.

Além da USP e das universidades britânicas, o projeto tem a participação da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), Universidade de Blumenau (FURB), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e University of Teeside (UK).

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Mais informações: Rafael Corteletti, email rafacorteletti@hotmail.com; ou com Jonas Gregorio de Souza, email jonas.gregorio@yahoo.com.br


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