Série de conteúdos produzidos pelo projeto Ciclo22, que remete à reflexão da USP sobre quatro grandes marcos (1822, 1922, 2022 e 2122): o bicentenário da Independência do Brasil, o centenário da Semana de Arte Moderna, o tempo presente e os desafios para os próximos 100 anos

A mata do Mucuri - Foto: autor desconhecido

Projeto de integração nacional buscou modernização dos sertões após a Independência

Tese desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP explorou a criação da Companhia de Comércio e Navegação em torno do Vale do Mucuri e Jequitinhonha

 14/10/2022 - Publicado há 2 anos

Crisley Santana

Com a chegada da família real ao Brasil, em 1808, a então colônia se tornou metrópole. A nova configuração trouxe a incorporação do capitalismo mercantil, isto é, produção de mercadorias dentro do território para comercialização externa, em vez de exportação de matérias-primas para Portugal produzir, como antes ocorria. 

A mudança favoreceu iniciativas privadas e incentivou o povoamento de áreas antes habitadas por povos indígenas, a fim de expandir o mercado que se formava.  Foi neste contexto, em 1847, em um Brasil já independente, que os irmãos Honório e Teófilo Ottoni criaram a Companhia de Comércio e Navegação do Mucuri, com o objetivo de unificar o norte mineiro e facilitar a exportação para outras áreas do País. 

A criação da organização e as iniciativas que se seguiram demonstram a tentativa de modernização dos sertões, conforme explorou a tese Nonada – os sertões na formação do estado nacional, desenvolvida por Fernando Afonso Ferreira Júnior na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Em entrevista ao Ciclo22, o pesquisador explicou por que a iniciativa não deu certo e como a modernidade permanece mobilizando debates no Brasil. 

A constituição da companhia

O principal objetivo da companhia foi criar uma nova rota comercial em Minas Gerais, ligando as regiões do Serro Frio e Jequitinhonha ao litoral sul da província da Bahia. A rota também previa a abertura de estradas e a colonização da região, então habitada por grupos indígenas denominados Botocudos. 

Para realizar a abertura da empresa, os irmãos Ottoni primeiro precisaram demonstrar ao governo provincial, que daria auxílio à iniciativa, o potencial da região e a viabilidade do processo. Para além da influência política que dispunham, se muniram de diversos estudos que demonstraram as vantagens de se investir no projeto, como por exemplo a economia de tempo e redução de gastos que a nova rota traria com transporte de mercadorias. 

Índios na região do Mucuri e o projeto de Teófilo Ottoni para a navegação do Sul ao Norte - Foto: Reprodução

A habitação dos povos indígenas Botocudos, porém, apresentava um empecilho. Além de serem tidos como hostis aos colonizadores, acreditava-se que os grupos que habitavam a região praticavam a chamada “antropofagia”, ritual que envolve o consumo de partes do corpo humano. 

Contudo, os irmãos conseguiram convencer os investidores de que a questão seria de fácil resolução, influenciados por ideias do liberalismo americano e pelo modo como se deu a ocupação no país do Norte. “Existia uma corrente que dizia que no processo de ocupação você exterminaria o índio porque ele se integraria ou ficaria à margem. Mesmo os princípios liberais não eram princípios de inserção do índio na nacionalidade”, disse o pesquisador.

A iniciativa dos Ottonis buscou encontrar formas pacíficas de convivência com os nativos, com incursões pelas terras a fim de estabelecer o apoio necessário para a constituição do projeto. As tribos indígenas que viviam nas áreas que viriam a ser exploradas, então, aceitaram ser instaladas em aldeamentos. 

O governo provincial aceitou conceder créditos à iniciativa, suspendendo impostos, por exemplo, e dando monopólio da navegação fluvial em partes da rota. Os irmãos também tiveram amplo apoio de setores da elite mineira, como fazendeiros, que atuaram como investidores privados do projeto.

A resistência à modernidade

Nos anos seguintes à consolidação houve diversas reviravoltas no cenário político, como a aprovação da Lei Eusébio de Queirós, em 1850, que proibia o tráfico de africanos escravizados. A aprovação de leis como essa impulsionam maiores investimentos na iniciativa, pois o foco dos investimentos deixou de ser a mão de obra escravizada.

Foi a partir de 1851 que a empresa pôde, efetivamente, dar cabo a seus projetos, que envolveram a construção de estradas, portos, armazéns, além de diversos núcleos urbanos que foram povoados por diferentes nacionalidades, como chineses e alemães.

Foi a imigração, entretanto, um dos fatores de crise da companhia. A grande leva de imigrantes que chegaram, especialmente entre 1857 e 1858, foi incompatível com o que a região poderia promover em termos de acessibilidade a comida e saneamento.  

Sem conseguir desenvolver o comércio esperado na região, a Companhia foi à falência, aspecto reconhecido pelo governo imperial em 1861, ano no qual encerrou o contrato feito com a empresa. 

Para o pesquisador Fernando Afonso, os motivos por trás do fracasso da tentativa de modernização dos sertões estão no fato de o Brasil não ter conseguido superar as questões coloniais, especialmente a escravidão.

Foto: Wikipedia Commons

Teófilo Ottoni -

“Ficou esse grande incômodo de precisar desenvolver a modernidade, mas não podê-lo por conta da escravidão, e também pela manutenção de certas características do antigo sistema colonial. Até hoje, por exemplo, temos plantation, essas grandes propriedades agrícolas de monocultura para exportação”, ressaltou. 

Para atingir a modernização, o País teria que ter passado antes por um processo de reforma agrária, segundo o pesquisador, algo que não aconteceu no Brasil.

“A Inglaterra fez a reforma agrária invertida. Foi a primeira grande reforma agrária quando, ao enclausurar as terras, expulsou o homem do campo para as cidades para gerar mão de obra para a industrialização. Foi um projeto de modernização, de desenvolvimento do capitalismo”, defendeu.

O pesquisador e a pesquisa 

Fernando Afonso Ferreira Júnior é economista, historiador e professor do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, no Ceará

Sua tese de doutorado foi desenvolvida em 2009 sob a orientação do professor Fernando Antônio Novais. Foi após a aprovação em um concurso para a Universidade Federal dos Vales Jequitinhonha e Mucuri que o pesquisador decidiu o objeto de estudo da sua tese. 

“Eu estava em Teófilo Otoni, na cidade onde foi feito aquele povoamento, então propus o tema porque não tinha nada de história econômica sobre a Companhia de Comércio”, disse.

Fernando Afonso Ferreira Júnior - Foto: Arquivo pessoal

Fernando Afonso Ferreira Júnior - Foto: Arquivo pessoal

Apesar da dificuldade em conciliar o estudo com o cargo de pró-reitor que assumiu na universidade, conseguiu concluir a pesquisa. “Virou uma loucura. Talvez seja até um trauma, mas quem sabe um dia possa voltar a ela e publicá-la.”

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