Série de conteúdos produzidos pelo projeto Ciclo22, que remete à reflexão da USP sobre quatro grandes marcos (1822, 1922, 2022 e 2122): o bicentenário da Independência do Brasil, o centenário da Semana de Arte Moderna, o tempo presente e os desafios para os próximos 100 anos

Aula de costura na Escola Caetano de Campos, em São Paulo, no fim do século 19 - Foto: Acervo Caetano de Campos/CRE Mário Covas

Movimentos excludentes impactam educação no Brasil desde a independência

Em entrevista, professora Carlota Boto, da Faculdade de Educação da USP, comenta mudanças e dificuldades da educação brasileira desde que o País se tornou independente

 07/10/2022 - Publicado há 1 ano

Crisley Santana

A ausência de uma formação voltada para a cidadania, escolas para poucas camadas da sociedade e a ideia da formação de súditos para a majestade que reinou no território brasileiro são alguns aspectos pelos quais a educação no Brasil ainda encontra resquícios, conforme disse em entrevista a professora Carlota Boto da Faculdade de Educação (FE) da USP, em São Paulo.

Para a professora, apesar dos avanços, ainda há dilemas que precisam ser superados, como a contradição em haver maior quantidade de crianças nas escolas, porém com ensino deficitário. Uma política central para as questões educacionais pode representar um horizonte possível, defendeu a docente. Confira a entrevista abaixo.

Carlota Boto, da Faculdade de Educação da USP -  Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Carlota Boto, da Faculdade de Educação da USP - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Quais áreas foram priorizadas na educação desde que o Brasil se tornou independente? 

Com a independência inicia-se uma fase em que se torna necessário formar cidadãos brasileiros. A ideia de Brasil se consolida com a independência. Nesse sentido, há projetos de escolarização que têm a ver com essa marca de ser necessário formar uma geração de brasileiros que pudesse ser responsável pelo desenvolvimento nacional. A fala do próprio imperador [D. Pedro I] durante a Constituinte de 1823 foi nesse sentido de extensão das oportunidades de escolarização para as camadas mais amplas da população. 

No entanto, o Brasil vivia naquela época as consequências da reforma pombalina. A reforma pombalina tinha criado aulas avulsas, chamadas aulas régias de primeiras letras, que podiam ser de latim, de grego, de filosofia. Então havia escolas muito diferentes daquelas que temos hoje, porque eram escolas onde um único professor dava aula de uma única coisa para alunos com formações e idades diferentes. Esse sistema de aulas avulsas permaneceu a despeito de algumas iniciativas, como, por exemplo, a da criação do Colégio Pedro II [no Rio de Janeiro], que buscaram estabelecer um sistema de escolarização graduada no Império brasileiro. 

Quanto ao ensino superior, havia algumas academias, especialmente durante o Segundo Império, que foram criadas, mas a maior parte dos acadêmicos daquela época acabavam por se formar na Universidade de Coimbra [em Portugal], que tinha um papel muito forte em receber estudantes brasileiros.

Estudantes em filas de escola no Brasil no fim do século 19 - Foto: Acervo CRE Mário Covas

A sua tese de livre-docência fala sobre o Iluminismo português e as reformas causadas por ele. Como esse movimento afetou a educação no Brasil?

Era um iluminismo que propunha a demarcação do avanço da sociedade. É um iluminismo católico e, por exemplo, Antônio Nunes Ribeiro Sanches, de quem eu falo nesse trabalho, propunha que houvesse a criação de escola nos centros urbanos mais populosos, mas que nas periferias e no campo fossem fechadas as escolas porque para ele essas populações não necessitavam de escolas. Então é um iluminismo restritivo em relação ao que foi o iluminismo francês, por exemplo.

O Iluminismo francês também afetou muito [a educação brasileira]. A gente tem, por exemplo, a proposta de Martim Francisco, que era o irmão do José Bonifácio de Andrada e Silva [ministro do Império], que adaptou o plano de escolarização da Revolução Francesa para o território brasileiro. 

Entretanto, o projeto francês marcava muito a dimensão de formação da cidadania, de construir um cidadão autônomo, independente, um cidadão crítico. E no Brasil ainda se tratava de uma sociedade de súditos. Havia uma monarquia que pretendia formar, não para a cidadania plena, mas para o lugar social de ser súdito da majestade, então há essa diferença. O discurso francês era muito marcado pela ideia de igualdade, já o discurso brasileiro não. 

Então, o que a gente vê nesses projetos é a tentativa de abertura em relação ao que se estava propondo no resto do mundo, mas por outro lado há a marca de um país escravista, de um país desigual, de um país excludente, já naquele período.

Quando mudou esse pensamento de formar a população para ser súdita?

Em termos do discurso, no final do Segundo Império a gente já tem, por exemplo, os pareceres do Ruy Barbosa [ministro da Fazenda durante a Primeira República] sobre ensino primário que apresentavam a necessidade de formação da cidadania. Então, eu diria que no Segundo Império a gente já tem a tessitura de um discurso que vai ser mais amplo, embora essa dimensão de uma sociedade fraturada em classes sociais e que não é marcada pela possibilidade da mobilidade ainda estivesse presente nesse final do Segundo Império e mesmo durante boa parte da República.

A senhora tem trabalhos que falam sobre a educação no período da Segunda República e essa questão da classe no Brasil se mostra muito forte. Como as mudanças que tivemos desde então se relacionam a essa fratura de classe, por exemplo?

Eu acho que nós ainda vivemos os resultados desse processo. Entretanto, nós temos uma sociedade em que o ensino obrigatório se estendeu até o ensino médio, crianças e adolescentes têm acesso à escolarização. O grande desafio que se coloca nessa cultura de escolarização é que essa escola possa ter melhores resultados. Então, o binômio entre a quantidade de crianças na escola e a qualidade do ensino ministrado ainda é um desafio a ser resolvido no cenário brasileiro.

O que que deveria ser feito ou priorizado nessa questão?

Uma das coisas que eu penso, até em desacordo com boa parte dos educadores, é que um dos problemas que nós tivemos no nosso desenvolvimento foi o ato adicional de 1834, uma legislação que retirou do poder central a competência de legislar sobre ensino primário e secundário. Até hoje nós vemos a União responsável prioritariamente pelo ensino superior e apenas no caso de suplência pelos níveis anteriores, que estão à rigor sobre a égide do Estado e dos municípios. Eu acho que falta uma política central de educação no Brasil. Uma política estatal que parta do governo federal. Eu acho isso fundamental para a gente pensar o desenvolvimento da escola brasileira. 

Se nós observarmos, por exemplo, esses quatro anos do governo Bolsonaro, o que houve de proposta para a educação básica de ensino fundamental e médio? Apenas a proposta de educação domiciliar, o projeto de homeschooling. Ou seja, o projeto de educação escolar do governo federal hoje é desescolarizar a sociedade. Isso me parece extremamente grave. Um governo que não atentou para a necessidade candente de melhoria da situação das escolas brasileiras, de valorização dos profissionais de ensino, de melhoria das condições infraestruturais dessas escolas e simplesmente propõe que as famílias se responsabilizem pelo ensino dos seus filhos. 

A necessidade de uma política de Estado, do ponto de vista do governo federal para a educação básica é uma necessidade que a gente já viu ser valorizada em outros governos e que hoje sentimos carência.

Em resumo, o que representa esse Bicentenário da Independência para a educação?

É um impacto simbólico. É hora de nós pensarmos outras formas de independência. É hora de pensarmos como formar cidadãos independentes, críticos, capazes de percorrer a sociedade em todos os níveis da sua formação social. Esses cidadãos que tenham essa formação ampliada, poderão reconstruir uma nação que venha a ser mais fraterna e mais justa.

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