“Retratos Fantasmas”: a fantasmagoria do universo afetivo

Guilherme Wisnik fala sobre o novo filme de Kleber Mendonça Filho, que considera sutil e muito pessoal, revelando “uma sensibilidade no limite da nostalgia”

 05/10/2023 - Publicado há 7 meses
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Na coluna desta semana, eu quero comentar o filme Retratos Fantasmas, do Kleber Mendonça Filho, que está atualmente no cinema. É um filme novo, que acaba de ser lançado, e já é um sucesso de público, mesmo com a situação de penúria vivida pelo cinema atualmente no Brasil e no mundo, e mesmo sendo um filme documentário e razoavelmente lento. Vamos lembrar que Kleber é o autor de Aquarius e de Bacurau, de filmes importantes sobre a cena recente urbana brasileira, em especial a pernambucana, e na interface com a política. Agora, o sentido político desse filme é mais sutil, é um filme muito pessoal. E a política está mais, digamos, na observação de um mundo que morre. Tem uma fantasmagoria de todo um universo afetivo que desaparece e que está ligado justamente ao cinemas de rua, aos três cinemas principais do centro do Recife, em especial o Arte Palácio e à figura de seu Alexandre, que era o responsável por passar os filmes. Enfim, o Kleber, jovem estudante de cinema, trabalha lá um pouco como assistente dele e na época faz gravações amadoras.

Ele junta no filme essas gravações amadoras do início dos anos 1990, quando os cinemas estavam sendo fechados, estavam vivendo seus últimos suspiros, com outras gravações amadoras anteriores ainda, que são feitas sobre o apartamento da família e a relação com a mãe e o irmão. Por isso que o filme tem esse tom tão pessoal e, ao mesmo tempo, ganha um aspecto geral ao falar de todo mundo que morre e com o qual muitos de nós nos identificamos.

O Kleber é talvez o grande cineasta brasileiro do momento, então tudo que ele faz a gente tem que prestar atenção, e esse filme, que é muito simples, poderia ser banal até, mas ele é feito com uma sensibilidade no limite da nostalgia, capaz de justamente exponencializar o sentido dessa ideia de fantasma, de fantasmagoria, aquilo que se invisibiliza, aquilo que desaparece, e os seres humanos invisíveis, fantasmas, tal como motorista de Uber que aparece lindamente na última cena. Mas os registros da cidade, meio alucinatórios, feitos à noite e agora recentes, a contraposição entre aquele mundo lúdico dos cinemas de uma diversão muito ligada à vida da calçada, quer dizer, o não shopping, das pessoas que frequentam a cidade com esse sentido festivo e artístico, e uma cidade que vai ficando estéreo, que vai ficando insípida. Então, ele passa dentro desse Uber filmando as cidades e só vê farmácias com aquela luz fria neon. É como se fosse uma cidade feita só de farmácias entrando numa espécie de alucinação, na mesma medida em que o motorista precarizado vai se tornando invisível e um fantasma. Então, isso é o poder da arte. Por uma dobra do real nos perguntar sobre a suposta normalidade do mundo em que vivemos, quando, na verdade, ele pode ser absolutamente anormal.


Espaço em Obra
A coluna Espaço em Obra, com o professor Guilherme Wisnik, vai ao ar  quinzenalmente quinta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9) e também no Youtube, com produção da Rádio USP,  Jornal da USP e TV USP.

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