Protestos massivos no Irã vão muito além do uso do véu

Marília Fiorillo diz que eles representam o levante de uma geração inteira contra a teocracia dos aiatolás, a qual está sofrendo o maior abalo desde sua instauração, há 40 anos

 21/10/2022 - Publicado há 1 ano

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“Há cerca de dez anos, em congressos internacionais, entre eles o da ISA (International Sociological Association), tive a oportunidade de conhecer e conversar com intelectuais iranianos. A conferência de um deles, aliás, era exatamente sobre o dress code, ou uso do hijab, no país. Contou que as estudantes iranianas, assim que entravam no recinto das universidades, tiravam seus lenços. Digo lenços, coloridos, estampados, meio transparentes, e que deixavam à mostra boa parte da cabeça e cabelos, pois o Irã sempre foi mais liberal quanto à vestimenta feminina, ao contrário dos países do Golfo Pérsico, onde o nikab e a burka  são obrigatórios (o primeiro cobre testa, queixo e pescoço, e, o segundo, só deixa à mostra os olhos, às vezes através de uma tela). “Digo isso para enfatizar que os massivos protestos que eclodiram no país desde a prisão e morte da jovem Mahsa Amini, e que já duram mais de um mês, vão além de uma questão de indumentária. São o levante de uma geração inteira contra a teocracia dos aiatolás. Não por acaso, a palavra de ordem mais usada é “Mulher, vida, liberdade”, seguida do slogan “Fora, religiosos” e buzinaços em 111 cidades.

“Desde a ascensão do aiatolá Khomeini ao poder, em 79, nunca, mas nunca mesmo, se viu um protesto de tal proporção, coragem e alcance. Para se ter uma ideia, entre os 8 mil presos estava a filha do ex-presidente Rafsanjani. E, apesar da brutal repressão (250 mortos), os manifestantes, a maioria jovens universitários, não recuam. Prova disso foi a acolhida calorosa, na madrugada dessa quarta, no aeroporto de Teerã, de uma atleta iraniana que dispensou o hijab numa competição em Seul, foi embarcada de volta às pressas e obrigada a colocar no seu instagram um daqueles pedidos de desculpa que sabemos ser pura coação.

“O Iran é a Pérsia, de cultura milenar, não um aglomerado de tribos enriquecidas subitamente com petrodólares. Mais da metade dos estudantes universitários é de jovens mulheres. O véu foi só a faísca que disparou a profunda e latente revolta da sociedade iraniana com o desemprego, a inflação, a crise econômica que se aprofundou graças ao ex-presidente Trump, quando ele rompeu unilateralmente, em 2018, as negociações sobre o acordo nuclear, defendidas pelos europeus e políticos reformistas iranianos. A reação foi a esperada: a derrota dos reformistas e um endurecimento do regime iraniano.

“À frente do protesto está uma nova geração, inclusive meninas de 15, 16 anos, que queimam seus lenços nas ruas e cortam o cabelo, um gesto simbólico que viralizou entre atrizes famosas, como  Juliette Binoche e Marion Cotillard. É preciso mais que isso para derrubar a teocracia de Khamenei, a guarda revolucionária ou a polícia de costumes. Mas a popularidade interna do regime iraniano sofre o maior abalo desde sua instauração, 40 anos atrás.”


Conflito e Diálogo
A coluna Conflito e Diálogo, com a professora Marília Fiorillo, vai ao ar quinzenalmente sexta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9 ) e também no Youtube, com produção da Rádio USP, Jornal da USP e TV USP.

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