Caro leitor, neste artigo, não usarei muitas informações sobre este caso monstruoso, abominável mesmo, uma vez que, como já mencionei acima, os media já o fizeram e fazem a todo momento. Portanto, seria repetir o que já é de domínio público. Não é necessário. Quero, isto sim, analisar a magnitude da brutalidade desta trama e suas consequências para a democracia política do nosso país. Assim é que, se nossa democracia social não vai bem, apesar dos esforços dos nossos dirigentes nesses últimos 30 anos (a exceção é o governo Bolsonaro que nada fez nesse sentido), então diante da realidade dos fatos que nos salta aos olhos, vejo-me também obrigado a reconhecer que ainda não nos alinhamos, não sedimentamos inteiramente as liberdades democráticas e o Estado de Direito em nosso país.
A Constituição, esta então, torna-se cada vez mais vilipendiada pelos interesses escusos de políticos descompromissados com o que se propuseram fazer no Congresso Nacional. As conquistas da nossa democracia, após o período de autoritarismo militar (1964-1985), correram o sério risco de sumir na poeira de um ex-presidente tresloucado, desajuizado e querendo que o País seja só dele.
É como se ele fosse a própria Carta Magna a quem todos nós, indistintamente, devemos obedecer e defendê-la. Inesperadamente, aparece uma pedra no caminho tentando impedir a evolução e o aprimoramento das nossas conquistas democráticas.
Ora, não podemos ficar aqui parados assistindo às atrocidades de um ex-presidente que sempre colocou seus interesses espúrios acima do bem-estar da sociedade e do próprio País. Não é possível esquecer, por exemplo, o grande trauma que este senhor causou à população brasileira quando, deliberadamente, boicotou a vacinação contra a pandemia da covid-19, em nome de suas crenças, crendices, convicções, ou algo que apenas ele sabe. Isto é algo inacreditável e não se pode jamais esquecer. Não é mera coincidência a admiração do ex-presidente Bolsonaro por Donald Trump, recém-eleito pela segunda vez presidente dos Estados Unidos. Ambos trazem consigo o gérmen do autoritarismo, mas um se submete ao outro até certo ponto de forma nitidamente subalterna. Trump, em discurso para falar da pandemia, aconselhou a população americana a beber água sanitária para as pessoas tonarem-se imunes ao vírus da covid-19; Bolsonaro estimulou as pessoas a usarem drogas como a hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina e corticoides para também se imunizarem.
Tudo isso, claro, sem nenhuma comprovação científica de que esses produtos poderiam nos imunizar, e contra as indicações do Conselho Federal de Medicina (CFM), um órgão com atribuições constitucionais de fiscalização e normatização da prática médica em nosso país. Donald Trump perdeu a eleição para Joe Biden e tentou dar um golpe de estado alegando fraude nas eleições. Se deu mal e fracassou em suas intenções. Por conta disso, incentivou seu eleitorado a invadir o Capitólio. Jair Bolsonaro, uma vez mais imitando seu “guru”, também alegou fraude nas eleições de 2022 por causa do voto eletrônico e fez o mesmo. Quando Donald Trump perdeu a eleição presidencial para Joe Biden, uma matéria no jornal Le Monde, que aqui traduzo, apresentou o seguinte título: “… Jair Bolsonaro perde Donald Trump, seu ‘amigo imaginário’”. A parte mais desinformada de seu eleitorado em 8 de janeiro de 2023 invadiu as dependências do Congresso Nacional e outras salas do Palácio do Planalto, praticando um vandalismo devastador do patrimônio público. Também foi mal-sucedido e fracassou em suas ambições. Essas “coincidências” de ações não são propriamente coincidências. O que percebemos é que Bolsonaro sempre imita Trump.
Logo após a posse do presidente Lula, ocorreu uma das manifestações mais perigosas para nossa democracia política. No dia 8 de janeiro de 2023, a extrema direita bolsonarista estimulou a invasão de órgãos públicos em Brasília, entre eles o Supremo Tribunal Federal (STF). Durante quatro anos, Trump e Bolsonaro viveram a situação de perdedores. Isso não impediu que o ex-presidente do Brasil continuasse bajulando e exaltando a “amizade” (fictícia, evidentemente) entre ambos, mas sempre em notória condição subalterna. Esta situação de puxa-saquismo nos faz lembrar do que o dramaturgo Nelson Rodrigues chama de “complexo de vira-lata”. Para melhor entender esta frase, vale a pena registrar sua apreciação sobre “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”.
É evidente que em um lance de bom humor o autor da frase generaliza, mas ele sempre teve consciência disso. Há, no entanto, uma diferença pública e notória entre Bolsonaro e Donald Trump, quando se trata do uso da violência física. Não se sabe de nenhum plano sinistro, de nenhuma trama diabólica de Donald Trump para assassinar seus adversários políticos. Já o ex-presidente Bolsonaro extrapolou e está fortemente enredado, com provas consistentes e irrefutáveis apresentadas pela Polícia Federal em suas diligências, que deixam muito clara a intenção do ex-presidente de assassinar os dois políticos e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) já mencionados acima.
Embora nossa história política seja entremeada de golpes que se concretizaram e outros não, vale a pena, para não ir muito longe, destacar apenas os nove golpes que ocorreram após a Independência do Brasil. São eles: a Noite da Agonia (1823), Golpe da Maioridade (1840), Proclamação da República (1889), Golpe de 3 de novembro (1891), o Caso Floriano Peixoto e a Primeira Revolta Armada (1891), Revolução de 1930, o Estado Novo (1937), Deposição de Getúlio Vargas (1945) e o Golpe de 1964. É só durante a Revolução de 1930 que ocorreu um assassinato. O do governador da Paraíba João Pessoa, que foi vítima fatal de uma luta política de origem civil-militar. É evidente que em todos esses golpes houve mortes, como quase sempre acontece quando a luta ocorre pelo conflito armado. De qualquer forma, esse trágico acontecimento deveria ficar mesmo circunscrito a um único exemplo na história do nosso país. Mas, atualmente, a tentativa de assassinar três autoridades públicas federais vem manchar ainda mais a trajetória de um país que tem historicamente lutado para a estabilidade e a consolidação da democracia.
E aqui não posso deixar de mencionar a conhecida frase do filósofo Karl Marx, ao analisar a trajetória da história que aparece em sua obra intitulada O 18 Brumário de Napoleão III. Ao refletir sobre o golpe de estado que levaria Napoleão III ao poder, ele diz: “A história se repete em forma de farsa ou de tragédia”. Trata-se de uma frase que atravessou o tempo e permanece atual. Isto porque a malfadada tentativa de golpe de estado articulada por Jair Bolsonaro e seus asseclas, que teve dois estágios, pode ser interpretada inicialmente como uma farsa baseada em mentiras e posteriormente na tentativa de traumatizar o País com a tragédia de assassinatos. A farsa, que analiso agora, se deu no momento em que 36 golpistas entre militares e civis se uniram ao ex-presidente para engendrarem o golpe de estado.
Por falta de melhor planejamento desses membros, mas também de apoio especialmente do Exército e da Aeronáutica, o golpe fracassou. Ainda bem! A história nos mostra que, em qualquer situação de anomalia política, e especialmente quando ocorre a luta política pelo poder do Estado, o vencedor será sempre aquele que receberá o apoio das forças bélicas, cuja função precípua é manter a ordem política e social. Mais uma vez, devemos celebrar o fato de que o poder bélico não estava em consonância com os golpistas do plano conhecido pelo nome de “Punhal Verde- Amarelo”, que horror! É assim mesmo. Fundamentalmente, as Forças Armadas, em qualquer país, apoiam os ditadores ou os democratas. Isto depende do que pensam as autoridades militares que estão no poder e de outros interesses não menos importantes, que só mais tarde os historiadores podem pesquisar e nos esclarecer. Basta lembrarmos, por exemplo, do golpe de 31 de março de1964, e agora a tentativa fracassada de Bolsonaro. As Forças Armadas decidiram sobre os destinos do País.
O plano fracassado tinha alguns objetivos e todos eles muito sinistros. A organização golpista intitulada “Kids Pretos”, formada por seis militares, estava encarregada de impedir que o presidente Lula tomasse posse no dia 1º de janeiro de 2023. Mas o plano era mais audacioso e incluía ações realmente assustadoras, como assassinar Lula, o presidente eleito e o vice Geraldo Alckmin. As opções para a prática dessa barbárie seriam: morte por explosões, envenenamentos ou disparos de armas.
Com relação ao ministro Alexandre de Moraes, estava definido o seu sequestro e nada mais se sabe sobre o que poderia acontecer depois. Mas ainda bem que o general Walter Braga Netto, articulador dessa operação, não prima por um raciocínio mais elaborado. Digo isto, porque é inacreditável que todo esse trabalho totalmente do mal tenha sido pensado isoladamente do apoio das Forças Armadas, que, como disse anteriormente são elas que, em conflitos políticos, decidem os destinos do Estado e, por extensão, da sociedade. Sem esse apoio, democracias ou ditaduras sucumbem. Não bastasse isso, o trabalho de inteligência da Polícia Federal mostra ainda a participação direta de Jair Bolsonaro ao lado de Braga Netto, como um dos principais articuladores do fracassado golpe.
Temos muitos exemplos históricos de situações semelhantes a esta. A preparação do golpe de estado e de assassinatos, tudo leva a crer, foi feita à revelia do poder bélico. Sendo assim, não poderia mesmo ter sucesso. É preciso entender que as Forças Armadas formam o mais eficiente aparelho repressivo de Estado. Portanto, o sábio aforismo popular de que “contra as balas não há resistência” tem todo sentido. Tanto é assim que, como demonstramos acima, essa tentativa só fracassou porque prevaleceu a decência, o respeito à Constituição e a integridade moral dos ministros do Exército e da Aeronáutica, que não aderiram aos anseios espúrios dos golpistas.
Isto seria um golpe mortal à nossa democracia política. Já não se pode falar a mesma coisa sobre a posição política do ex-comandante da Marinha. No relatório final liberado do sigilo pelo ministro Alexandre de Moraes, consta que o almirante Almir Garnier teria apoiado a trama golpista preparando uma eventual intervenção militar se fosse necessária. Pois é, este é um momento político muito delicado para a debilitada democracia política do País, porque as Forças Armadas não estão coesas em seu propósito de defender a nação. E defender não só da atual tentativa de golpe, mas também de futuros possíveis planos golpistas. Isto porque este é o clima político desejado e criado pela extrema direita liderada por Bolsonaro. Ela estará sempre a postos para novas tentativas de tomar o poder pela força bruta.
Nesse momento, o País viaja em um mar revolto de águas turvas, e a coesão das Forças Armadas não é apenas fundamental, mas também determinante para mantermos nossa democracia política em aperfeiçoamento e evolução. É inacreditável a desfaçatez e o cinismo do ex-presidente, quando declarou aos veículos de comunicação que ele nada tem a ver com o esquema sinistro que pretendia assassinar o presidente Lula, seu vice Geraldo Alckmin e sequestrar o ministro Alexandre de Moraes. Em seu breve discurso de defesa para os media, se colocou como um democrata fiel à Constituição. Disse que sempre se pautou pela legalidade, agindo “dentro das quatro linhas da Constituição”. Os fatos apurados mostram algo muito diferente.
Todo o trabalho de inteligência e investigação da Polícia Federal converge para elementos substanciosos, mostrando que Bolsonaro tinha conhecimento e participação no plano de assassinato de Lula e Alckmin, além do sequestro de Alexandre de Moraes. Seria muita ingenuidade acreditar que o ex-presidente desconhecia a existência do plano sinistro “Punhal Verde-Amarelo”. No dia 9 de novembro de 2022, quando ele ainda era presidente, o texto final deste plano foi impresso exatamente no Palácio do Planalto. Nessa época, Mario Fernandes exercia o cargo de secretário executivo da Secretaria Geral da Presidência. Entre tantas outras coisas, é isto o que mostram as investigações contidas no relatório conclusivo da Polícia Federal, e que foram recentemente liberadas para o conhecimento público. Caro leitor, se você já leu o inquérito de 884 páginas elaborado pela Polícia Federal sabe que ele é minucioso, preciso e, ao mesmo tempo, assustador em determinados momentos da narrativa.
Sim, assustador e malvado, pela frieza com que um grupo de extrema direita politicamente equivocado, planejou assassinar três autoridades que prezam pelas liberdades democráticas em nosso país. Por outro lado, devemos sim, respeitar a conduta política de uma extrema direita inteligente, que pense em fazer política em prol do estado e da sociedade, e não a prática do gangsterismo. Em qualquer país democrático, situação e oposição têm a mesma importância. Desinteligências políticas e ideológicas se resolvem ou não, com o diálogo, com o respeito mútuo, mas nunca assassinando os adversários que pensam política e ideologicamente diferente. Não vivemos mais os tempos do nazifascismo europeu dos anos de 1930 e 1940, quando assassinar os opositores dessa ideologia era uma prática simplesmente recorrente e pronto, o estado autoritário considerava o problema resolvido e um fato consumado.
É extremamente preocupante, sabermos que as investigações sobre a tentativa de golpe apontam para crimes como abolição do Estado Democrático de Direito pela força bruta, golpe de Estado e organização criminosa. Há uma vasta documentação que corrobora o trabalho da Polícia Federal. São conversas, documentos encontrados em aparelhos eletrônicos, textos escritos, diálogos gravados e outros elementos contundentes e consistentes, que nos levam a constatar a comprovada intenção malévola de eliminar fisicamente autoridades dos poderes Executivo e Judiciário, para tomar o poder político pela violência, pela força bruta. Discorrendo sobre as ações do “Punhal Verde-Amarelo”, em determinado momento da narrativa, podemos ler no relatório da Polícia Federal o seguinte texto: “O documento descreve o levantamento da estrutura de segurança do ministro Alexandre de Moraes, os meios que deveriam ser empregados e a ação final de prisão/execução do ministro. O planejamento também estabelece a possibilidade, dentre as ações dos ‘Kids Pretos’, de assassinarem o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, por envenenamento ou por uso de químicos, e o então vice-presidente eleito Geraldo Alckmin, com a finalidade de extinguir a chapa presidencial”.
Pois bem, se este macabro objetivo se concretizasse integralmente, o País ficaria, momentaneamente, sem o chefe e o vice-chefe do poder Executivo. Em situação normal, de acordo com o artigo 80 da Constituição, assumiria a vacância da presidência da República o presidente da Câmara dos Deputados. Para maior clareza, esta é a linha sucessória que deveria ser obedecida: mortos, respectivamente, o presidente Lula e seu vice Geraldo Alckmin, assumiria, portanto, o deputado Arthur Lira. Mas isso é o que reza a Constituição. Seria novamente muita ingenuidade termos a expectativa de que este processo sucessório seria respeitado. Não, caro leitor, definitivamente não seria.
O grupo dos golpistas impediria o presidente da Câmara dos Deputados de assumir a presidência e, muito provavelmente, tomaria o poder na força bruta. Afinal, este é o objetivo de uma extrema direita violenta, desrespeitosa com a democracia e a sociedade, e que já fez a primeira tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023. O próximo passo, justamente para descaracterizar o golpe de Estado, seria então evocar que, em nome dos “princípios democráticos”, Jair Bolsonaro assumiria a presidência em “caráter provisório”. Se assim acontecesse, a farsa estaria completa e plena de êxito. A essa altura precisamos entender que os golpistas assassinariam Lula e Alckmin, para que não houvesse chance de o vice-presidente assumir a presidência do País. Algo que aconteceu, por exemplo, com o vice-presidente Pedro Aleixo em 1969, quando o presidente general Arthur da Costa e Silva se afastou da presidência por motivos de saúde.
Mas, uma pergunta se faz necessária: e se o golpe de Estado fosse efetivamente realizado? Bem, é preciso lembrar que os eleitores brasileiros se dividiram, como bem mostrou o resultado final das urnas. Lula ficou com 50,83% e Bolsonaro 49,17% do eleitorado, ou seja, tínhamos, mas não sei se ainda temos, um país dividido em duas vertentes políticas totalmente opostas. Resta saber, então, como reagiriam a sociedade e, em particular, os eleitores de Lula que, a essa altura, se sentiriam órfãos de sua escolha ao votar em seu nome para presidente. Não há como responder a esta pergunta com precisão. Se, por um lado, tudo fica por conta do imponderável, por outro lado, uma coisa é certa: a população brasileira vem adquirindo um perfil mais participativo, mais reivindicativo politicamente e, em face dessa barbárie, poderia reagir de alguma forma que não se sabe qual. O que não se pode é subestimar a frustração, a ira e a indignação de um movimento de massa, de uma população que, com certeza, se sentiria lesada por conta de um autoritarismo político que usou o crime, matando um presidente e seu vice para tentar chegar ao poder.
Dizer que todo este quadro golpista fragiliza ainda mais nossa débil democracia seria “chover no molhado”, como diz o conhecido aforismo de domínio público. É preciso reconhecer esta fragilidade e enfrentar todos os obstáculos que agora existem e os que ainda virão. Os golpistas já demonstraram sua obsessão doentia pelo poder tentando realizar um triplo assassinato. Não digeriram a derrota nas urnas, nem o fracasso do golpe de Estado. Cidadãs e cidadãos que primam pelas liberdades democráticas devem estar sempre alertas porque outras tentativas não estão descartadas. Devemos fazer a defesa incondicional da democracia, mas sem a violência do triste quadro que vimos em 8 de janeiro de 2023. Para isso, temos uma arma poderosa que se chama voto. O cuidado e o aprimoramento meticuloso na escolha de um candidato quando do sufrágio universal, isto sim, sem dúvida, nos levará a sedimentar em definitivo as bases da democracia em nosso país. Mais uma vez, tem todo sentido a frase da canção de Caetano Veloso, Divino, Maravilhoso, quando diz: “… é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. A democracia é a vida, o golpe é a morte.
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