“Eu vou ser vigia, vi-gi-a!”

Por Henrique Braga, doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Marcelo Módolo, professor da FFLCH-USP

 13/12/2024 - Publicado há 1 mês
Henrique Braga – Foto: Arquivo pessoal
Marcelo Módolo – Foto: Arquivo pessoal
Na semana que passou, recebemos de vários amigos e amigas (a quem agradecemos novamente) um áudio tão lúcido quanto engraçado, em que o enunciador se mostrava indignado com uma suposta questão de concurso (“suposta” porque o áudio pode ser uma boa peça de ficção, ainda que coerente com a realidade). Na dita questão, pedia-se que os candidatos analisassem a oração subordinada substantiva no período “Tenho certeza de que seremos felizes”. Seria uma objetiva indireta? Uma completiva nominal? Talvez uma subjetiva? Diante de tais possibilidades, a conclusão a que chegou o concurseiro, mesmo sem dar a resposta, foi contundente: “Eu vou ser vigia! Vi-gi-a! Vou cuidar de noite da p* de um portão pra ninguém entrar, pra ninguém sair”.

Com a simplicidade, a inteligência e o pragmatismo necessários às classes populares deste nosso Brasil, o protesto do autor dessa pérola remete a um tema que para nós é muito caro e muito sério: quais conhecimentos sobre língua materna devem compor os currículos da educação básica?

Exames são indutores de currículos

A revolta expressa no pitoresco áudio recai sobre um concurso para uma vaga de emprego, tipo de exame de seleção que tem efeito direto sobre as expectativas e práticas da educação escolar. A mesma observação vale para os exames de admissão ao ensino superior.

Em termos práticos: de um lado, não se pode esquecer de que, recentemente, a educação brasileira passou a contar com uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que, além de ser nosso referencial obrigatório para a elaboração dos currículos, determina um ensino-aprendizagem de língua materna muito mais adequado à contemporaneidade do que àquele que requeria a análise sintática de frases artificiais; de outro lado, as salas de aula do “mundo real”, especialmente no ensino médio, não podem cometer a ousadia de negligenciar o que “cai” nos vestibulares e no Exame Nacional do Ensino Médio – provas que, em meio aos solavancos da chamada “Reforma do Ensino Médio”, ainda não se adequaram plenamente às aprendizagens previstas na BNCC.

A distância entre os novos currículos (sobretudo no caso dos itinerários formativos de certas redes) e os exames, vale lembrar, esteve na pauta dos movimentos que exigiam a revogação do Novo Ensino Médio – culminando em sua revisão, aprovada pela Câmara e sancionada em julho de 2024 pelo presidente Lula.

Em suma, se concursos públicos e provas de acesso ao ensino superior exigirem que os candidatos saibam diferenciar uma oração subordinada substantiva objetiva direta de uma oração subordinada adjetiva restritiva, tais “palavrões” serão devidamente ensinados à nossa linda juventude. Diante disso, repetimos, com outros termos, o questionamento do concurseiro indignado: isso é pertinente?

“Eu vou morar nos Estados Unidos, porque lá fala outra coisa”

Em seu desabafo, o concurseiro chega a afirmar que odeia seu próprio idioma, cogitando, hiperbolicamente, ser vantajoso mudar de país, para evitar essa língua. O curioso é que ele diz isso em perfeito português, de forma clara e correta, com uma desenvoltura que é bastante difícil atingir em idiomas estrangeiros.

Essa autoimagem distorcida que falantes brasileiros têm da sua proficiência linguística é, sem dúvida, resultado de currículos ultrapassados (embora ainda vigentes em muitas escolas), que levavam os estudantes a confundir língua com gramática e, no fim das contas, a confundir saber português com saber regras, sem que essas regras tivessem necessariamente relação com o desempenho dos falantes na leitura ou na escrita. Para a vaga de vigia (ou de corretor de imóveis, ou de gerente de banco, ou de engenheiro), seria mais relevante classificar a oração subordinada substantiva do que perceber os efeitos semântico-discursivos promovidos por esse tipo de estrutura sintática?

Para sermos justos, é forçoso destacar que, no Enem, os itens não se limitam a essa “gramática pela gramática”, não se espera que os egressos do ensino médio sejam burocráticos classificadores. Já sobre os exames vestibulares, não se pode dizer exatamente a mesma coisa: limitando nosso olhar às principais universidades públicas paulistas, embora seus vestibulares não privilegiem o conhecimento da nomenclatura gramatical, não se pode dizer que ela tenha sido plenamente abolida. Mesmo sendo exceção, é possível encontrar em edições recentes dessas provas itens que requerem a mera identificação do sujeito ou do complemento nominal (destacamos que os exames da Unicamp têm conseguido escapar a isso).

Abaixo a gramática?

Longe de advogar a exclusão do conhecimento gramatical dos currículos da educação básica, advogamos aqui um estudo de língua materna mais centrado em desenvolver a competência leitora, as práticas da oralidade e da escrita e ainda o senso crítico, o que pode (e deve!) incluir o estudo de temas gramaticais. Em vez de apenas classificar o artigo definido, é importante identificar seu papel na remissividade do discurso. Além de classificar os substantivos abstratos, cabe reconhecer seu poder argumentativo nos textos. Mais do que chamar uma oração de substantiva, o principal é compreender que tal recurso linguístico pode estar associado à modalização do discurso ou ao discurso reportado.

Voltando aos exames vestibulares e ao Enem, boa parte dos itens que exploram conhecimentos gramaticais já adotam essa perspectiva. Contudo, contrariando o adágio popular, nesse caso a exceção obnubila a regra: a tradição escolar normativista e classificadora vibra quando um exame de prestígio exige, a seco, a identificação do objeto direto. Casos assim, mesmo quando isolados, tendem a ser tratados por vezes como prova de que sim, a escola ainda deve privilegiar a boa e velha gramática tradicional! A tradição respira!

“Das afirmativas”

Parodiando o velho bruxo (se é que se pode parodiá-lo), encerramos sem a pena da galhofa ou a tinta da melancolia. Além de a BNCC nos indicar um horizonte em que se privilegiem abordagens mais detidas sobre as práticas de leitura, oralidade e escrita, nas quais temas como variação linguística, textualidade, gêneros textuais e análise do discurso ganham lugar de destaque, também o Enem e os principais vestibulares têm sinalizado, como regra, a importância de se formarem cidadãos aptos a integrarem a complexa arena textual que nos envolve neste século XXI. Está lá, basta querer ver.

Obs.: para eventuais curiosos, registramos que a oração do concurso é uma completiva nominal (ligada por preposição ao substantivo “certeza”).

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